06 agosto 2007

o ano da chibata

Santana Castilho
Público, 19 de Julho de 2007

Analiso as políticas educativas, na imprensa portuguesa, de forma permanente e regular, desde 1981. Digo, pesando o que digo, que este é o pior Governo para a área educativa não superior de que guardo memória. Tudo o que seria importante para promover a qualidade do sistema de ensino ou não foi realizado ou foi objecto de medidas que degradaram ainda mais o que já era mau. A ministra da Educação e os respectivos secretários de Estado foram tecnicamente incompetentes e politicamente irresponsáveis. Transportando para o mundo do ensino a cultura dominante da governação de Sócrates, actuaram como pequenos ditadores e 2006/2007 cola-se-lhes à acção como o ano da chibata. Longe de ser exaustivo, fundamento o que afirmo com um balanço breve do ano lectivo que ora finda.

1. As políticas para o ensino foram boçais e destituídas de visão estratégica. A ministra e os seus ajudantes mostraram ter cabeças tayloristas, convencidas de que gerir passa por fazer, pela força e pelo medo, com que os professores executem as suas ideias inconsistentes. Qualquer mudança, desde que reduzisse, economizasse e afrontasse os professores, foi considerada moderna e progressista.
O ano lectivo de 2006/2007 tinha obviamente que reflectir a verificada redução orçamental (4,2 por cento no básico e secundário e 8,2 no superior) e patentear o que o Governo privilegiava com isso: diminuir o salário dos professores; piorar as condições em que exercem a profissão; cortar-lhes direitos protegidos pela lei que os próprios carrascos produziram (vide as decisões dos tribunais sobre as remunerações das aulas de substituição); tornar cada vez mais precárias as condições contratuais, em obediência aos cânones da liberalização selvagem; fechar escolas (900 a somar às 1400 do ano transacto). Tudo em nome do défice. Mas o défice que hoje nos condiciona a vida foi-se acumulando ao longo dos tempos, sob responsabilidade de políticos com nome, vivos e bem instalados na vida. Sem vergonha e sem contrição pública, alguns voltaram ao exercício político e censuram hoje, displicentemente, aquilo por que foram responsáveis ontem.
Para que não me acuse de ficar no vago, concretize o leitor respondendo: quem foi o político que concebeu o modelo retributivo do funcionalismo público, que tantos elegem hoje como a desgraça do Estado? Como se chama o megalómano que decidiu gastar milhões em dez estádios de futebol, num país que manda as filhas parir no estrangeiro e convoca para intervenções cirúrgicas velhos já mortos, cegos, apodrecidos em anos de espera por uma simples operação às cataratas? Qual o peso que sobrou para o défice público da saga de Cahora Bassa e quem são os políticos por ela responsável?
Concedendo, sem mais discussão, que não nos podemos eximir às regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (que nome mais impróprio) e à lógica da globalização sem rei nem roque, os três exemplos anteriores, de uma infindável lista, e o contexto em que ocorreram, justificariam uma metodologia bem diferente para tratar os professores. Só incultos ou desumanos não o entendem.

2. O recente concurso de "professor titular", a que foram opositores os docentes dos anteriores 8.º, 9.º e 10.º escalões, é bem o paradigma da trapalhada, da injustiça e do improviso em que se afunda a 5 de Outubro: duma vida inteira de profissão, iluminados decidiram que só uns anos contam; dos cargos, os mesmos deram preferência aos administrativos; durante a semana em que o concurso decorreu, pôde o país verificar, atónito, que consoante os dias assim a posse do grau de mestre somava ou retirava pontos ao número necessário, como o exercício de cargos políticos equivalia ou deixava de equivaler a serviço docente; concorrentes ao concurso integraram órgãos de verificação e validação de dados, ou seja, foram juízes em causa própria, com um quadro referencial de confusão e bagunça, o que faz prever uma bela caldeirada conflitual final. Imaginar-se-ia pior?

3. Se do lado dos professores o ano foi mau, do lado dos alunos só podia ser pior. Os exames, fundamentais como sempre tenho defendido, mas longe de tudo resolverem ou serem o mais importante de todo o processo, são o motivo, por via dos respectivos resultados, para que o país acorde, embora só por escassos dias.
Há semanas, depois de múltiplas decisões judiciais contra o Governo, o Tribunal Constitucional decretou a inconstitucionalidade de um despacho do secretário de Estado Valter Lemos, sobre os exames, que prejudicou 10.000 alunos e beneficiou 5000, em violação da igualdade que deve presidir ao tratamento dos cidadãos num Estado de direito. Que aconteceu? Nada! Nem a ele nem à ministra que defendeu, contra tudo e contra todos, com a arrogância que lhe conhecemos, o indefensável. A cena da Física do ano passado ditou a demagogia primária deste ano. Da multiplicidade de exames, correspondentes à confusão de programas vigentes, encontrou-se o menor denominador comum e decretou-se o exame único: uma farsa, um desrespeito pelo trabalho dos alunos, das escolas e dos professores. Mas a redução do número de provas não isentou de erros a produção dos exames. Lá voltámos a ter 36.000 alunos confrontados com uma pergunta a que nenhum poderia responder, por ser rematada asneira. Que fez a ministra? Achou irrelevante e engendrou a solução tecnicamente bruta que os pais foram contestar em tribunal. Até quando?
Sem contenção de linguagem e sem o mínimo rigor pedagógico e científico, a ministra ligou o Plano da Matemática, com escassos meses de acção, incompleta, mesmo assim, por incumprimento seu, aos resultados dos exames que estariam para vir. Quando apareceram os primeiros, do 12.º ano, que nada têm com o famigerado plano, que apenas contempla o ensino básico, embandeirou em arco e insinuou uma relação que não existe. Finalmente, deve ter mordido a língua quando foram conhecidos os do básico, os piores de sempre, que reduziram ao ridículo as declarações que produziu antes. Terá ao menos realizado que falou dos êxitos das suas políticas como os talibans falam de Alá ou as beatas da Senhora de Fátima?

No ano que ora finda, nada do que pode mudar o desastre foi realizado. A trapalhada do edifício curricular permaneceu incólume, assim como a incoerência dos programas de estudo. Aumentou o facilitismo e a idiotização do ensino. Subalternizou-se ainda mais a Literatura no ensino do Português. Empurrou-se para debaixo da mesa a trapalhada da TLEBS. Liquidou-se a Filosofia. Manteve-se uma dispersão assassina e ignorante de solicitações aos alunos (12 disciplinas no 3.º ciclo do básico e mais tempo de permanência na escola que os operários nas fábricas, não é de loucos?).
Mudou-se a estrutura orgânica do ministério, deixando-o igualmente centralizador e burocrático. Promoveu-se o clientelismo e premiou-se a delação e o servilismo. Mudou-se a legislação disciplinar, mas continua a ser mais fácil falsificar uma nota de 50 que actuar com eficácia sobre os pequenos delinquentes, que tornam a vida dos colegas e dos professores um martírio diário. Nada mexeu quanto ao anacronismo da gestão das escolas. Professores, vítimas de cancros em fase terminal, foram indignamente chibatados para morrerem no posto, em nome duma lógica economicista que rejeita aquisições civilizacionais básicas.
Mal haja, senhora ministra.

04 agosto 2007

bergman e antonioni

Pedro Mexia
Público, 4 de Agosto de 2007
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Morreram exactamente no mesmo dia, em 2007. E nesse fim de semana de Julho morreu também "uma certa ideia de cinema". Ingmar Bergman, sueco de Uppsala, nascido em 1918. Michelangelo Anonioni, italiano de Ferrara, nascido em 1912.
Bergman é um dos meus cinesastas de cabeceira. Antonioni suscita mais admiração intelectual que adesão emocional. Mas são ambos autores importantes na minha memória cinéfila.
Bergman é o teatro. O miúdo que leu Strindberg todo na adolescência (uma brutalidade inimaginável) fez todo o seu mundo teatro: encenou peças, casou com actrizes, cultivou os seus actores fetiche, escreveu argumentos sobre meios teatrais. É um cineasta da palavra.
Antonioni é um cineasta da imagem. O que acima de tudo retemos dos seus filmes são avenidas largas, ilhas desertas, postes de electricidade, gruas. É um cinema visual, um cinema de arquitectura, que ao tempo (à palavra) sempre preferiu o espaço (a distância).
Bergman era um nórdico típico, nascido antes do aborrecimento social-democrata. Educado na austeridade e na desumanidade luteranas, sempre se interessou pela intimidade. Os seus temas são por excelência temas "sérios" (como julgo que já não se diz). O sexo (Um Verão de Amor, 1950; Mónica e o Desejo, 1954; Sorrisos de Uma Noite de Verão, 1955). A família e o casamento (Morangos Silvestres, 1957; Lágrimas e Suspiros, 1972; Cenas da Vida Conjugal, 1973; Sonata de Outono, 1978; Fanny e Alexandre, 1982). A morte (acima de todos O Sétimo Selo, 1957). E, naturalmente, a metafísica, na sua trilogia sobre o silêncio de Deus (Como num Espelho, 1961; Luz de Inverno, 1961; O Silêncio, 1963), todos eles com um invulgaríssimo agnosticismo inquieto.
Antonioni era um italiano atípico e um intelectual típico. Foi um cronista da burguesia gélida e alienada. Dizem que inventou um cliché - a "incomunicabilidade" - mas é um dos clichés mais verdadeiros que conheço. É verdade que Antonioni não escapou aos modismos e a algumas derivas simbólicas. Mas a sua desolação ainda nos afecta: o desaparecimento em A Aventura (1960), o enfado literato em A Noite (1961) ou o final mudo de O Eclipse (1962). E ninguém para quem o cinema seja importante esquece as diversas figurações da ilusão em Blow Up (1966), especialmente a fictícia partida de ténis.
Bergman foi um autor da gravidade. O grande plano sobre o rosto humano atingiu a perfeição em Persona (1966). Antonioni preferia uma certa indicibilidade. O crítico do Corriere della Sera, Tullio Kezich, conta que em finais dos anos 50 o produtor Dinno de Laurentiis quis trabalhar com Antonioni. Este apresentou a seguinte sinopse: um grupo de amigos vai para uma ilha e uma rapariga desaparece. Laurentiis perguntou: e o que é que lhe aconteceu? Antonioni: "A quem, à rapariga? Não sei." Talvez fosse essa a grande diferença: Bergman tinha dúvidas, Antonioni não sabia.
Ambos amavam as mulheres. Nunca fui especialmente sensível à musa de Antonioni, a beldade anémica e existencialista Monica Vitti. Mas acho curioso que depois de ter perdido a mobilidade e a fala, em 1985, Antonioni tenha colaborado em dois filmes com grande carga erótica. Talvez perseguido ainda (é um título seu) o perigoso fio das coisas.
As mulheres de Bergman (suas actrizes e companheiras) são a galeria mais inesquecível da história do cinema, juntamente com as louras frígidas de Hitchcock. A mais memorável talvez seja Liv Ullmann. Mas há também a androginia de Bibi Andersson. A maturidade deslumbrante e magoada de Ingrid Thulin. E Monica (Harriet Andersson), a imagem mesma do desejo, a boca carnuda, os olhos decididos, o pescoço e os ombros molhados.
Retirado há uns anos numa ilha ao largo da Suécia, Bergman ameaçou várias vezes deixar o cinema. Mas o miúdo a quem tinham dado uma fascinante lanterna mágica (como conta na autobiografia), só nos deixou com o magnífico Saraband (2003), prova de que todos os temas continuam vivos na velhice, ou seja, na mortalidade.
Sobre Antonioni, recordo agora uma belíssima frase, salvo erro de Fellini: "É o único de nós que merece chamar-se Miguel Ângelo."

01 agosto 2007

manifesto por uma nova cultura do território

Rafael Mata Olmo
Presidente da Associação de Geógrafos Espanhóis

No passado mês de Maio foi apresentado aos meios de comunicação social o manifesto: “Por uma nova cultura do território”. Este manifesto, que constitui uma chamada de atenção à sociedade em geral e, particularmente, aos responsáveis políticos, sobre a necessidade de reconduzir o modelo actual de crescimento urbano em Espanha, foi patrocinado pelos presidentes da Associação de Geógrafos Espanhóis e do Colégio de Geógrafos, e promovido por um grupo de profissionais e professores das áreas de urbanismo, geografia, direito, ciências naturais, engenharia e economia. Acompanham o manifesto mais de uma centena de adesões de prestigiados especialistas dos campos de conhecimento citados. A intenção dos promotores do manifesto é difundi-lo nas comunidades autónomas e municípios, aumentando as adesões, e constituir mais adiante uma plataforma cidadã sobre este assunto. A seguir, apresenta-se o texto do manifesto:

A evolução que se está a verificar relativamente ao uso do solo em Espanha, principalmente em resultado dos avanços de uma urbanização realizada de forma massiva e sobre terrenos nem sempre adequados, é muito preocupante. Este processo está a ter consequências ambientais e paisagísticas muito negativas, cuja magnitude, em muitos casos, não está a ser considerada nem corrigida. O actual modelo de urbanização está a ter consequências prejudiciais à qualidade de vida dos cidadãos – entre as quais têm expressão muito evidente as dificuldades de acesso à habitação, o aumento da mobilidade e o acréscimo dos custos dos serviços – que podem comportar efeitos preocupantes para o equilíbrio do sistema financeiro e da actividade económica, tal como foi advertido em repetidas ocasiões às autoridades fiscais e monetárias. Além disso, a prática do urbanismo converte-se muito frequentemente em sinónimo de falta de transparência, de “má política” e inclusive de corrupção. Portanto, o instrumento que deveria servir para ordenar o uso do território em benefício da colectividade, acaba por se identificar, em muitos casos, como uma técnica ilegítima, onde a participação democrática do conjunto de actores presentes nos territórios é irrelevante, prevalecendo os interesses dos agentes urbanizadores.
No campo disciplinar, a própria expressão “ordenamento do território”, ainda não alcançou um consenso técnico-científico suficiente, e a sua prática real na maioria das comunidades autónomas não chegou a ser relevante em termos político-administrativos. Nesta circunstância, consome-se voraz e desordenadamente um recurso limitado, o território, sem se que se disponha de instrumentos de gestão adequados, e sem que se atinjam respostas suficientes para os graves e irreversíveis danos que estão a ocorrer em vários lugares.
A gestão prudente do território deve converter-se no elemento central de um novo debate cidadão. Um debate democrático, em que participem todos os actores implicados, especialmente aqueles que têm menos capacidade para fazer ouvir a sua voz. É imprescindível por isso que a sociedade espanhola tome consciência de que, ao persistir no mau uso e desordem do território, acumula, através de uma etapa curta de grandes benefícios privados, longos e onerosos períodos de custos ambientais, económicos e sociais. A maior capacidade técnica para transformar a natureza e os espaços de vida, o rápido aumento da população e dos níveis de consumo, devem ser acompanhados de prudência e respeito quanto à gestão dos recursos de que dispomos. Só assim conseguiremos manter e melhorar o nosso nível de bem-estar, só assim aproveitaremos as grandes potencialidades de que goza o nosso território, só assim evitaremos deixar às gerações futuras uma Espanha desfigurada, cheia de riscos e repleta de exasperações quotidianas, de desequilíbrios territoriais, de processos segregadores e de deterioração irreversível dos elementos culturais, simbólicos e patrimoniais.
É necessário, por isso, estabelecer as bases de uma nova cultura do território. Uma nova cultura territorial que impregne a legislação estatal e regional, que oriente a prática de todas as câmaras locais e o conjunto das administrações, que forneça o cenário adequado para o bom funcionamento do mercado, e que corrija, em benefício da colectividade, os excessos privados, fazendo prevalecer os valores da sustentabilidade ambiental, da eficiência funcional e da igualdade social. Esta nova cultura do território deve estar sustentada, na opinião dos autores, nos seguintes princípios, critérios e prioridades:

1. O território é um bem não renovável, essencial e limitado
A sociedade encontra em si mesma o suporte e o sustento material das suas necessidades, assim como a referência à sua identidade e cultura. As características naturais de cada território e a sobrevivência de traços e formas que provêm do passado conferem-lhe singularidade e valores de diversidade. Por isso, o território deve ser entendido como recurso, mas também como cultura, história, memória colectiva, referência de identidade, bem público, espaço de solidariedade e legado. A nova cultura do território deve ter como primeira preocupação encontrar formas para que, em cada lugar, a colectividade desfrute dos recursos do território e preserve os seus valores para as gerações presentes e futuras.

2. O território é uma realidade complexa e frágil
A realidade territorial e todos os lugares são compostos por múltiplos elementos naturais e culturais e pelas suas inter-relações, que devem ser adequadamente consideradas. As intervenções com grande incidência territorial (urbanizar, construir obras públicas, extrair minerais, cultivar, reflorestar, etc.) têm habitualmente consequências irreversíveis. Por isso devem ser realizadas com consciência desta complexidade e apoiadas pela avaliação prévia das múltiplas repercussões possíveis. O princípio da precaução é imprescindível para todas estas transformações.

3. O território contém valores ecológicos, culturais e patrimoniais que não se podem reduzir ao preço do solo
Estes valores sociais, difíceis de medir em termos convencionais, devem ser sistematicamente considerados pelas administrações responsáveis para defender as suas qualidades e potencialidades. A apropriação privada de qualquer parte do território deve ser compatível com tais valores. Por isso, a propriedade do solo e a habitação devem ser concebidas de acordo com a sua função social, assumindo plenamente a responsabilidade de realizar a sua utilidade, o seu valor ambiental e o seu potencial paisagístico.

4. Um território bem gerido constitui um activo económico de primeira ordem
Na verdade, a correcta gestão do processo de urbanização permite reduzir os custos da mobilidade para as pessoas e as empresas, conter os preços do solo e da habitação, assim como moderar os custos da prestação dos serviços. Por outro lado, dispor de uma envolvente de qualidade não só evita danos ambientais como atribui valor adicional aos produtos e serviços, em particular aos turísticos, essenciais para a economia espanhola. A gestão sustentável do território é certamente uma obrigação social e ambiental, mas também é uma exigência económica imperativa.

5. O planeamento territorial e urbanístico é um instrumento essencial para a actuação dos poderes públicos
Perante toda a inconstância reguladora, é preciso defender a importância da legislação, da normatividade e da gestão urbanística para o bom governo do território. No entanto, a prática urbanística deve dotar-se de novos horizontes e de novas ferramentas disciplinares e administrativas. Só desta forma dará resposta às necessidades sociais, propiciará a coordenação política horizontal entre distintos departamentos e fomentará o acordo vertical entre administrações e agentes sociais. O conjunto de administrações competentes deve propiciar uma revalorização do planeamento territorial e geral, suprimindo a utilização espúria de outros instrumentos de menor alcance espacial, mas com elevada incidência na realidade, e cuja aplicação abusiva teve como consequência a urbanização massiva, desordenada e inadequada do solo rural.

6. O planeamento municipal deve ter como principal objectivo facilitar o acesso à habitação, o desfrute dos serviços e a preservação do ambiente
O planeamento municipal é a escala básica da prática urbanística, mas em muitas ocasiões os planos locais de ordenamento servem quase exclusivamente para impulsionar processos de expansão urbana. Diante deste desvio, é necessário defender planos municipais de ordenamento que atribuam valores positivos a todas e a cada uma das partes do território municipal, enquadrando o crescimento urbano segundo critérios ecológicos e sociais, além da simples consideração da oportunidade económica ou de ocasionais negócios particulares imediatos. Concretamente, é necessário abandonar o conceito de solo rural como espaço residual, continuamente pendente da urbanização futura, e compreender que a permanência de solos rurais destinados às práticas agrárias se torna imprescindível por razões ambientais e ecológicas, inclusive nos contextos espaciais das maiores cidades e aglomerações urbanas. A defesa do espaço aberto como modelo territorial básico é hoje uma prioridade que deve ser perseguida adequadamente, inclusive através de procedimentos de aquisição de terras e/ou apropriação por interesse social.


7. O planeamento territorial deve proporcionar acordos básicos sobre o traçado das infra-estruturas, o desenvolvimento das aglomerações e o sistema de espaços abertos
Num território crescentemente integrado, o planeamento municipal não pode enfrentar por si só as dinâmicas de transformação do espaço. Por isso, é actualmente mais necessário do que nunca dispor de um planeamento à escala territorial, que coordene e vincule o planeamento municipal a um novo modelo de urbanização, baseado na economia do consumo do solo, na convivência de usos e na coesão social. O planeamento territorial deve ser um compromisso ao mesmo tempo geral e suficientemente concreto. As actividades políticas dos partidos e responsáveis pela formulação e aprovação deste planeamento serão avaliadas conforme o seu cumprimento e desenvolvimento. Sobre as Comunidades Autónomas recai a grande responsabilidade de demonstrar uma maior vontade política de organizar o seu território, superando a situação criada quase exclusivamente pelo planeamento urbano. Estas devem aumentar a sua capacidade administrativa e técnica para realizar planos de ordenamento e tornar efectiva a ordem territorial que propõem. É imprescindível a formulação de modelos de ordenamento territorial para âmbitos metropolitianos, litorais e de espaços rurais, com cidades médias e/ou espaços naturais protegidos.

8. O Governo central e o Parlamento do Estado não se podem desentender quanto ao território
Com todo o respeito pelas competências que a Constituição espanhola outorga às Comunidades Autónomas e aos municípios em relação ao ordenamento territorial e urbanismo, a administração geral do Estado não pode deixar de considerar o território como parte da sua responsabilidade. No momento actual, é impreterível a revisão da legislação vigente desde 1998 sobre medidas liberalizadoras quanto ao solo, que supere a visão estreita de que a sua vocação essencial seria a urbanização. A legislação do Estado deve solicitar às administrações competentes a atribuição de valores sociais positivos para todas as partes do território espanhol, já que todas elas afectam a qualidade de vida dos cidadãos, todas têm funções naturais, ecológicas ou ambientais e em todas elas se inscrevem traços históricos e do património cultural. Sobre o governo central recai igualmente a responsabilidade de rever e propor o consenso relativo a um novo modelo de financiamento para os governos locais, capaz de responder aos princípios de suficiência financeira e adequação de recursos aos serviços reais que devem prestar.


9. Num mundo crescentemente integrado, a gestão do território deve atender também aos compromissos de solidariedade e responsabilidade global
O Estado espanhol subscreveu e/ou ratificou diferentes acordos internacionais (Convenção sobre Conservação e Protecção da Vida Selvagem e Meio Natural, Berna, 1979; Carta Europeia de Ordenamento do Território, Torremolinos, 1983; Convenção para a Protecção do Património Arquitectónico da Europa, Granada, 1985; Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; Estratégia Territorial Europeia, Potsdam, 1999; Princípios Directores para o Desenvolvimento Territorial Sustentável do Continente Europeu, Hanover, 2000; Convenção Europeia da Paisagem, Florença, 2000). Nestas circunstâncias, o conjunto de administrações públicas espanholas está obrigado a seguir as orientações que outros estados europeus assumem em relação ao ordenamento do território em consequência de tais tratados e com repercussões muito positivas para os cidadãos.

10. O impulso dos valores de sustentabilidade ambiental, eficiência económica e igualdade social requer uma nova cultura do território.
Para a promover é necessário um amplo acordo que deve ter reflexo tanto na actuação administrativa como nas práticas sociais. Desta forma, as administrações que actuam em cada nível territorial (local, regional, estatal e europeu) devem rever os seus objectivos, as suas normas e instrumentos de gestão territorial, para os colocar de modo mais efectivo ao serviço da colectividade. E os cidadãos, ao mesmo tempo que exigem o direito a um tratamento equitativo em qualquer território, têm também o dever ético de zelar pelo bem-estar das gerações futuras.

Maio de 2006