Riem-se na sua cara
Rui Tavares
Público, 5 de Agosto de 2013
Escrevo estas linhas numa aldeia ribatejana de fim de estrada, onde só se escuta a camioneta da carreira, até ao dia em que acabarem com isso também. E, no entanto, até aqui os ouço. Riem-se na minha cara. Riem-se na cara de todos os intelectuais, bem intencionados, politizados desde a nascença, que passaram a vida a dizer aos amigos: «Sabes o que era bom, para mudar o mundo?» - «Abrir uma editora», «abrir um jornal», «abrir uma universidade», «criar um partido», «fundar um centro de estudos».
Riem-se, porque eles um dia disseram: «Sabem o que é preciso, para fazer política a sério?» - «Abrir um banco». E a partir daí foi só rir.
Riram-se na sua cara quando fundaram o BPN, como uma espécie de Herdade da Coelha das instituições financeiras, um lugar confortável para quem tinha estado no PSD e no governo do Professor Cavaco.
Riram-se quando concederam a filhos e esposas empréstimos de milhões que não tinham intenções de jamais reembolsar. Riram-se quando ex-ministros criaram empresas fictícias para comprar acções do próprio banco.
Riram-se, talvez de nervoso muidinho, quando as coisas começaram a correr mal. Há um mail em que procuram apressadamente novos membros do Conselho: «Este, que é do PS», «aquele, que é amigo do primeiro-ministro». Os tempos tinham mudado as caras em São Bento, era preciso acautelar as coisas.
Riram-se quando o banco foi à falência. De alívio. Foi você que pagou a conta e eles, bem, desde que não fossem apanhados a matar alguma velhota, tudo haveria de correr bem.
Riem-se na cara de todos os adeptos que passam três horas em frente à TV a discutir um penálti mal marcado. Afinal, um lucro de 150% em ações compradas com dinheiro do vendedor e vendidas outra vez ao mesmo é que é «limpinho, limpinho, limpinho». Mesmo quando se é presidente do Conselho Superior, como o ministro Rui Machete, não há nada para estranhar. Você, quando acha 25 euros na algibeira onde pensava ter só 10 euros, estranha? E se forem 25 milhões? E se tiver mais meia dúzia de conselhos para presidir?
Eles riem-se na cara da classe média, da classe baixa e até da classe alta. Eles não têm medo da luta de classes, porque eles acham isso fora de qualquer cogitação: eles estão para lá de qualquer classe. No mundo deles, há regras especiais que são só para eles. Por isso riem-se de cada pedido de demissão: sabem que a oposição nunca se vai entender para mais do que pedir a demissão.
Riem-se na sua cara, quem quer que você seja. Riem na cara da aposentada de Bragança, do funcionário público de Coimbra, do rapper da Brandoa, do comerciante falido do Porto, do desempregado e do emigrado e do pós-graduado que procura um bilhete low-cost para vir a casa. Riem-se na cara dos que tiveram que mudar de país por não mudar o país. Riem-se na cara dos que mudaram para o outro país, o país do Facebook, o país dos manifestos e petições, o país do «eles são todos iguais», o país da indignação na expectativa.
Riem-se na cara do intelectual bem intencionado que nem sabe sentir raiva direito e que, por causa dos livros de História, tem prurido em escrever «eles» e «nós».
Afinal, eles sempre souberam que havia eles e nós.
Público, 5 de Agosto de 2013
Escrevo estas linhas numa aldeia ribatejana de fim de estrada, onde só se escuta a camioneta da carreira, até ao dia em que acabarem com isso também. E, no entanto, até aqui os ouço. Riem-se na minha cara. Riem-se na cara de todos os intelectuais, bem intencionados, politizados desde a nascença, que passaram a vida a dizer aos amigos: «Sabes o que era bom, para mudar o mundo?» - «Abrir uma editora», «abrir um jornal», «abrir uma universidade», «criar um partido», «fundar um centro de estudos».
Riem-se, porque eles um dia disseram: «Sabem o que é preciso, para fazer política a sério?» - «Abrir um banco». E a partir daí foi só rir.
Riram-se na sua cara quando fundaram o BPN, como uma espécie de Herdade da Coelha das instituições financeiras, um lugar confortável para quem tinha estado no PSD e no governo do Professor Cavaco.
Riram-se quando concederam a filhos e esposas empréstimos de milhões que não tinham intenções de jamais reembolsar. Riram-se quando ex-ministros criaram empresas fictícias para comprar acções do próprio banco.
Riram-se, talvez de nervoso muidinho, quando as coisas começaram a correr mal. Há um mail em que procuram apressadamente novos membros do Conselho: «Este, que é do PS», «aquele, que é amigo do primeiro-ministro». Os tempos tinham mudado as caras em São Bento, era preciso acautelar as coisas.
Riram-se quando o banco foi à falência. De alívio. Foi você que pagou a conta e eles, bem, desde que não fossem apanhados a matar alguma velhota, tudo haveria de correr bem.
Riem-se na cara de todos os adeptos que passam três horas em frente à TV a discutir um penálti mal marcado. Afinal, um lucro de 150% em ações compradas com dinheiro do vendedor e vendidas outra vez ao mesmo é que é «limpinho, limpinho, limpinho». Mesmo quando se é presidente do Conselho Superior, como o ministro Rui Machete, não há nada para estranhar. Você, quando acha 25 euros na algibeira onde pensava ter só 10 euros, estranha? E se forem 25 milhões? E se tiver mais meia dúzia de conselhos para presidir?
Eles riem-se na cara da classe média, da classe baixa e até da classe alta. Eles não têm medo da luta de classes, porque eles acham isso fora de qualquer cogitação: eles estão para lá de qualquer classe. No mundo deles, há regras especiais que são só para eles. Por isso riem-se de cada pedido de demissão: sabem que a oposição nunca se vai entender para mais do que pedir a demissão.
Riem-se na sua cara, quem quer que você seja. Riem na cara da aposentada de Bragança, do funcionário público de Coimbra, do rapper da Brandoa, do comerciante falido do Porto, do desempregado e do emigrado e do pós-graduado que procura um bilhete low-cost para vir a casa. Riem-se na cara dos que tiveram que mudar de país por não mudar o país. Riem-se na cara dos que mudaram para o outro país, o país do Facebook, o país dos manifestos e petições, o país do «eles são todos iguais», o país da indignação na expectativa.
Riem-se na cara do intelectual bem intencionado que nem sabe sentir raiva direito e que, por causa dos livros de História, tem prurido em escrever «eles» e «nós».
Afinal, eles sempre souberam que havia eles e nós.
<< Página inicial