Defeitos e virtudes de Gaspar
João Miguel Tavares
Público, 2 de Julho de 2013
A verdadeira carta de demissão de Vítor Gaspar não foi aquela que ontem apresentou a Pedro Passos Coelho. Foram as declarações que proferiu no início de Junho, à margem de uma conferência em Lisboa. Instado pelos jornalistas a comentar os erros que cometeu durante a sua passagem pelo governo, Gaspar respondeu com uma inesperada frontalidade: «Tenho o maior gosto em discutir erros, mas apresentar uma lista seria demasiado demorado. Deixe-me apontar-lhe apenas um, que me parece importante.» E, pela boca do próprio ex-ministro das Finanças, ficámos a saber que o maior dos seus erros foi este: «Pensei que se poderia dar prioridade à consolidação orçamental e à estabilização financeira sem uma transformação estrutural profunda das administrações públicas. Neste momento, é claro que um esforço muito mais concentrado, desde o primeiro dia, na transformação das administrações públicas, teria sido mais apropriado.»
Rui Ramos, no Expresso, chamou a atenção para este extraordinário desabafo de Vítor Gaspar, mas de um modo geral ninguém ligou patavina àquela que foi provavelmente a mais importante declaração política que fez durante os pouco mais de dois anos que esteve à frente do Ministério das Finanças. Gaspar anunciava a quem o quisesse ouvir que no início do seu mandato pensava conseguir pôr ordem nas contas públicas sem efectuar uma profunda reforma do país, e que esse pensamento provara-se, afinal, errado.
Por aqui, ninguém o pode acusar de desonestidade intelectual, e há que admirar a candura com que, na sua carta de demissão, admite ter falhado: «A repetição de desvios minou a minha credibilidade enquanto ministro das Finanças.» Fossem todos os políticos tão sinceros e seríamos todos mais felizes. No entanto, se Gaspar não pode ser acusado de desonestidade intelectual, o primeiro-ministro pode: afinal, a tão famosa e badalada reforma do Estado era, desde o início, apenas um elemento decorativo no programa eleitoral do Governo, um bibelô para enganar eleitores incautos. O homem «que se lixem as eleições» tentou o velho equilibrismo nacional, todo ele muito eleitoralista, que consiste em apostar não na estratégia do bom aluno, mas na do aluno calão: esforçar-se ao máximo para fazer o mínimo, apenas o suficiente para ir passando nos exames da troika. Só que o mínimo, como se vê, não chegou.
Gaspar sai após se dar conta da dimensão do seu erro, e por provavelmente não se sentir com força política para o corrigir. Eu tenho boa impressão de Maria Luís Albuquerque, mas o rali argumentativo a que tem sido obrigada por causa dos swaps não augura nada de bom. Estando o país a meio de um programa de assistência, compreende-se a aposta em quem conhece os dossiês, mas um ministro das Finanças não devia entrar no Terreiro do Paço a fugir de uma barragem de perguntas incómodas. Pior: ao ser despromovida a número três do governo, trocando com Paulo Portas, ninguém tem dúvidas de quem ganhou o braço-de-ferro da «coesão da equipa governativa». Ou muito me engano, ou a famosa reforma do Estado que Portas se prepara para apresentar vai ser uma mão-cheia de nada e outra de coisa nenhuma, mais centrada na baixa de impostos do que na real diminuição do peso da administração pública. Vítor Gaspar cometeu inúmeros erros, mas a ausência de calculismo político era uma garantia contra os eleitoralismos. Agora isso acabou. E eu duvido que o país vá ficar melhor.
Público, 2 de Julho de 2013
A verdadeira carta de demissão de Vítor Gaspar não foi aquela que ontem apresentou a Pedro Passos Coelho. Foram as declarações que proferiu no início de Junho, à margem de uma conferência em Lisboa. Instado pelos jornalistas a comentar os erros que cometeu durante a sua passagem pelo governo, Gaspar respondeu com uma inesperada frontalidade: «Tenho o maior gosto em discutir erros, mas apresentar uma lista seria demasiado demorado. Deixe-me apontar-lhe apenas um, que me parece importante.» E, pela boca do próprio ex-ministro das Finanças, ficámos a saber que o maior dos seus erros foi este: «Pensei que se poderia dar prioridade à consolidação orçamental e à estabilização financeira sem uma transformação estrutural profunda das administrações públicas. Neste momento, é claro que um esforço muito mais concentrado, desde o primeiro dia, na transformação das administrações públicas, teria sido mais apropriado.»
Rui Ramos, no Expresso, chamou a atenção para este extraordinário desabafo de Vítor Gaspar, mas de um modo geral ninguém ligou patavina àquela que foi provavelmente a mais importante declaração política que fez durante os pouco mais de dois anos que esteve à frente do Ministério das Finanças. Gaspar anunciava a quem o quisesse ouvir que no início do seu mandato pensava conseguir pôr ordem nas contas públicas sem efectuar uma profunda reforma do país, e que esse pensamento provara-se, afinal, errado.
Por aqui, ninguém o pode acusar de desonestidade intelectual, e há que admirar a candura com que, na sua carta de demissão, admite ter falhado: «A repetição de desvios minou a minha credibilidade enquanto ministro das Finanças.» Fossem todos os políticos tão sinceros e seríamos todos mais felizes. No entanto, se Gaspar não pode ser acusado de desonestidade intelectual, o primeiro-ministro pode: afinal, a tão famosa e badalada reforma do Estado era, desde o início, apenas um elemento decorativo no programa eleitoral do Governo, um bibelô para enganar eleitores incautos. O homem «que se lixem as eleições» tentou o velho equilibrismo nacional, todo ele muito eleitoralista, que consiste em apostar não na estratégia do bom aluno, mas na do aluno calão: esforçar-se ao máximo para fazer o mínimo, apenas o suficiente para ir passando nos exames da troika. Só que o mínimo, como se vê, não chegou.
Gaspar sai após se dar conta da dimensão do seu erro, e por provavelmente não se sentir com força política para o corrigir. Eu tenho boa impressão de Maria Luís Albuquerque, mas o rali argumentativo a que tem sido obrigada por causa dos swaps não augura nada de bom. Estando o país a meio de um programa de assistência, compreende-se a aposta em quem conhece os dossiês, mas um ministro das Finanças não devia entrar no Terreiro do Paço a fugir de uma barragem de perguntas incómodas. Pior: ao ser despromovida a número três do governo, trocando com Paulo Portas, ninguém tem dúvidas de quem ganhou o braço-de-ferro da «coesão da equipa governativa». Ou muito me engano, ou a famosa reforma do Estado que Portas se prepara para apresentar vai ser uma mão-cheia de nada e outra de coisa nenhuma, mais centrada na baixa de impostos do que na real diminuição do peso da administração pública. Vítor Gaspar cometeu inúmeros erros, mas a ausência de calculismo político era uma garantia contra os eleitoralismos. Agora isso acabou. E eu duvido que o país vá ficar melhor.
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