«Liberdade para escolher»: o irrealismo perverso do cheque-ensino
Nuno Serra
Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), N.º 48, Outubro de 2010
Na famosa obra de George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro, uma das funções da novilíngua consistia em dissolver o «pensamento herético» através do esquecimento ou da alteração radical do sentido das palavras e das coisas. Na Oceânia cinzenta habitada por Winston Smith, personagem central da narrativa, a responsabilidade pela condução da guerra, por exemplo, cabia ao Ministério da Paz, tal como a lei e a ordem eram asseguradas pelo Ministério do Amor.
É difícil não lembrar o romance de Orwell a propósito do regresso recente, nos tempos de crise que atravessamos, do discurso liberalizante que a fórmula «menos Estado, melhor Estado» encerra, e sob a qual se pugna por uma retracção generalizada e sistemática da esfera de governação e de provisão pública em matéria de direitos sociais.
No domínio da educação, uma das propostas assumida de forma explícita no projecto de revisão constitucional apresentado pelo PSD, e desde há muito defendida pelo CDS-Partido Popular (CDS-PP), tem um alcance aparentemente simples e sedutor junto da opinião pública: em nome da liberdade de ensino, pais e alunos deveriam poder passar a escolher, sem restrições, a escola que os filhos desejassem frequentar. Para tal, caberia ao Estado atribuir um cheque-ensino às famílias, cujo montante seria estimado através do rácio por aluno calculado a partir da actual despesa do Ministério da Educação com as escolas do sistema público. Deste modo, os agregados familiares poderiam escolher livremente o estabelecimento de ensino pretendido no seio de uma nova rede escolar, alargada, que a proposta de revisão constitucional igualmente preconiza (e que passaria a integrar, além das públicas, as escolas particulares e cooperativas).
Esta proposta não tem, curiosamente, a mesma motivação financeira (associada à redução do défice público) que se en contra nas propostas de revisão constitucional tendentes a alterar as regras de acesso ao Sistema Nacional de Saúde (nomeadamente através do fim da sua gratuitidade, já de si tendencial, para os cidadãos com rendimentos mais elevados). Nos termos em que é apresentado, o cheque-ensino visaria apenas alargar a igualdade de oportunidades de acesso de todos os alunos às melhores escolas, nomeadamente aos estabelecimentos de ensino do sector privado. E beneficiaria, essencialmente, os estudantes mais desfavorecidos, que por essa razão não dispõem de condições económicas para estudar nos colégios privados que as elites frequentam.
Esta ideia alimenta-se, desde logo, de uma convicção que se foi instalando gradualmente na sociedade portuguesa, segundo a qual o ensino privado tem uma qualidade manifestamente superior à do ensino público. Sendo certo que há razões que tornam compreensíveis as diferenças observadas (como a tendência para que as escolas privadas sejam de menor dimensão, se organizem em turmas constituídas com um menor número de alunos e apresentem um funcionamento orgânico em regra mais consolidado), a realidade está longe de sustentar o modo categórico e abissal com que esta diferença é recorrentemente apresentada. Mas vamos por momentos admitir que esta convicção, relativa à supremacia do ensino privado em matéria de qualidade, é verdadeira e, simultaneamente, admitir a bondade de intenções subjacente à proposta de criação do cheque-ensino. Para que a sua introdução não comporte um reforço do orçamento do Ministério da Educação, o financiamento da medida teria de ser forçosamente suportado pela redução dos actuais encargos com a rede pública de Ensino Básico e Secundário. E assim sendo, como pretendido, as escolas passariam então a ter que competir pelos alunos, de modo a ver financeira mente assegurado o seu regular funcionamento.
A novilíngua em educação: marginalização é liberdade
Baseando-se na delimitação geográfica das áreas de influência de cada estabelecimento de ensino, a legislação em vigor obriga de facto, tendencialmente, a que um aluno apenas se possa inscrever na escola pública da sua área de residência (ou num estabelecimento de ensino situado na proximidade do local de trabalho dos seus pais). Perante estes critérios, que habitam em plenitude um despacho nesse sentido do Ministério da Educação, mas que não têm tradução exaustiva na realidade (dado serem bem conhecidos os expedientes a que recorrem as famílias para contornar estas regras), o cheque-ensino representaria – segundo os seus proponentes – uma verdadeira revolução.
De facto, a liberdade de escolha que a medida proporcionaria é-nos apresentada de uma forma tão épica, que, por momentos, quase nos esquecemos que a vida das pessoas decorre num quadro espaço-temporal que é, por natureza, relativamente limitado. Isto é, quase nos esquecemos que as escolhas acabam sempre por estar circunscritas às fronteiras do espaço de vida quotidiano (que é físico, mas também social), tornando improvável que um aluno de Carrazeda de Ansiães possa optar por frequentar o melhor colégio de Lisboa, sem que tal implique uma necessária mudança de residência. Ou seja, o cheque-ensino pode, em teoria, ampliar as possibilidades de escolha de um estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias, mas tal não significa, na prática, uma mudança tão substancial como se pretende fazer crer face ao que são as reais possibilidades e mecanismos de escolha de que os alunos, actualmente, dispõem.
A este irrealismo no modo como a proposta do cheque-ensino é apresentada junta-se um outro, que arrasta consigo a profunda perversidade da medida. De facto, é legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do «vale» que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que supostamente exerçam em plenitude o seu direito à liberdade de escolha em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos.
Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings (sistemas de classificação) de resultados escolares – que são uma espécie de agências de rating (notação) para a educação –, de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino.
Ou seja, as escolas passariam a escolher os alunos que pudessem manter a sua reputação num nível elevado, de excelência, o que significa que seriam prioritariamente cooptados os estudantes mais promissores, isto é, aqueles que exibem melhores resultados escolares em anos precedentes.
Esta «selecção natural», feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão, por alunos provenientes de «castas inferiores», seria significativa. Sem surpresa, surgiriam muito provavelmente pressões sobre a direcção destas escolas para que não fossem aceites alunos com trajectórias escolares menos exuberantes ou, em alternativa, assistir-se-ia a uma tendência para a saída dos melhores alunos para outros estabelecimentos de ensino, caucionando assim a boa posição da escola no ranking de resultados. Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas de educação.
O objectivo inconfessado dos partidos da direita, que a proposta do cheque-ensino desvela, parece pois ser outro e inscreve-se na agenda ideológica de retracção do Estado, dos serviços públicos e dos direitos sociais. Trata-se, essencialmente, de assegurar a transferência de recursos do sistema público de educação para o ensino privado, custeando os percursos escolares de estudantes da classe alta e média-alta e não – como prometido – de beneficiar os alunos de classes sociais menos favorecidas, que continuariam a ver negado o acesso (ainda que, em principio, já não por razões económicas) aos reputados estabelecimentos de ensino do sector privado. Mas, mais grave do que isso, o próprio sistema público, cujo princípio de organização por áreas de influência geográfica das escolas tem permitido uma razoável convivência de alunos com diferentes origens económicas e sociais, ver-se-ia depauperado nos seus recursos (com impactos na qualidade de ensino) e submetido a uma lógica competitiva que é contrária à educação como direito e condição de cidadania.
Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), N.º 48, Outubro de 2010
Na famosa obra de George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro, uma das funções da novilíngua consistia em dissolver o «pensamento herético» através do esquecimento ou da alteração radical do sentido das palavras e das coisas. Na Oceânia cinzenta habitada por Winston Smith, personagem central da narrativa, a responsabilidade pela condução da guerra, por exemplo, cabia ao Ministério da Paz, tal como a lei e a ordem eram asseguradas pelo Ministério do Amor.
É difícil não lembrar o romance de Orwell a propósito do regresso recente, nos tempos de crise que atravessamos, do discurso liberalizante que a fórmula «menos Estado, melhor Estado» encerra, e sob a qual se pugna por uma retracção generalizada e sistemática da esfera de governação e de provisão pública em matéria de direitos sociais.
No domínio da educação, uma das propostas assumida de forma explícita no projecto de revisão constitucional apresentado pelo PSD, e desde há muito defendida pelo CDS-Partido Popular (CDS-PP), tem um alcance aparentemente simples e sedutor junto da opinião pública: em nome da liberdade de ensino, pais e alunos deveriam poder passar a escolher, sem restrições, a escola que os filhos desejassem frequentar. Para tal, caberia ao Estado atribuir um cheque-ensino às famílias, cujo montante seria estimado através do rácio por aluno calculado a partir da actual despesa do Ministério da Educação com as escolas do sistema público. Deste modo, os agregados familiares poderiam escolher livremente o estabelecimento de ensino pretendido no seio de uma nova rede escolar, alargada, que a proposta de revisão constitucional igualmente preconiza (e que passaria a integrar, além das públicas, as escolas particulares e cooperativas).
Esta proposta não tem, curiosamente, a mesma motivação financeira (associada à redução do défice público) que se en contra nas propostas de revisão constitucional tendentes a alterar as regras de acesso ao Sistema Nacional de Saúde (nomeadamente através do fim da sua gratuitidade, já de si tendencial, para os cidadãos com rendimentos mais elevados). Nos termos em que é apresentado, o cheque-ensino visaria apenas alargar a igualdade de oportunidades de acesso de todos os alunos às melhores escolas, nomeadamente aos estabelecimentos de ensino do sector privado. E beneficiaria, essencialmente, os estudantes mais desfavorecidos, que por essa razão não dispõem de condições económicas para estudar nos colégios privados que as elites frequentam.
Esta ideia alimenta-se, desde logo, de uma convicção que se foi instalando gradualmente na sociedade portuguesa, segundo a qual o ensino privado tem uma qualidade manifestamente superior à do ensino público. Sendo certo que há razões que tornam compreensíveis as diferenças observadas (como a tendência para que as escolas privadas sejam de menor dimensão, se organizem em turmas constituídas com um menor número de alunos e apresentem um funcionamento orgânico em regra mais consolidado), a realidade está longe de sustentar o modo categórico e abissal com que esta diferença é recorrentemente apresentada. Mas vamos por momentos admitir que esta convicção, relativa à supremacia do ensino privado em matéria de qualidade, é verdadeira e, simultaneamente, admitir a bondade de intenções subjacente à proposta de criação do cheque-ensino. Para que a sua introdução não comporte um reforço do orçamento do Ministério da Educação, o financiamento da medida teria de ser forçosamente suportado pela redução dos actuais encargos com a rede pública de Ensino Básico e Secundário. E assim sendo, como pretendido, as escolas passariam então a ter que competir pelos alunos, de modo a ver financeira mente assegurado o seu regular funcionamento.
A novilíngua em educação: marginalização é liberdade
Baseando-se na delimitação geográfica das áreas de influência de cada estabelecimento de ensino, a legislação em vigor obriga de facto, tendencialmente, a que um aluno apenas se possa inscrever na escola pública da sua área de residência (ou num estabelecimento de ensino situado na proximidade do local de trabalho dos seus pais). Perante estes critérios, que habitam em plenitude um despacho nesse sentido do Ministério da Educação, mas que não têm tradução exaustiva na realidade (dado serem bem conhecidos os expedientes a que recorrem as famílias para contornar estas regras), o cheque-ensino representaria – segundo os seus proponentes – uma verdadeira revolução.
De facto, a liberdade de escolha que a medida proporcionaria é-nos apresentada de uma forma tão épica, que, por momentos, quase nos esquecemos que a vida das pessoas decorre num quadro espaço-temporal que é, por natureza, relativamente limitado. Isto é, quase nos esquecemos que as escolhas acabam sempre por estar circunscritas às fronteiras do espaço de vida quotidiano (que é físico, mas também social), tornando improvável que um aluno de Carrazeda de Ansiães possa optar por frequentar o melhor colégio de Lisboa, sem que tal implique uma necessária mudança de residência. Ou seja, o cheque-ensino pode, em teoria, ampliar as possibilidades de escolha de um estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias, mas tal não significa, na prática, uma mudança tão substancial como se pretende fazer crer face ao que são as reais possibilidades e mecanismos de escolha de que os alunos, actualmente, dispõem.
A este irrealismo no modo como a proposta do cheque-ensino é apresentada junta-se um outro, que arrasta consigo a profunda perversidade da medida. De facto, é legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do «vale» que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que supostamente exerçam em plenitude o seu direito à liberdade de escolha em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos.
Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings (sistemas de classificação) de resultados escolares – que são uma espécie de agências de rating (notação) para a educação –, de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino.
Ou seja, as escolas passariam a escolher os alunos que pudessem manter a sua reputação num nível elevado, de excelência, o que significa que seriam prioritariamente cooptados os estudantes mais promissores, isto é, aqueles que exibem melhores resultados escolares em anos precedentes.
Esta «selecção natural», feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão, por alunos provenientes de «castas inferiores», seria significativa. Sem surpresa, surgiriam muito provavelmente pressões sobre a direcção destas escolas para que não fossem aceites alunos com trajectórias escolares menos exuberantes ou, em alternativa, assistir-se-ia a uma tendência para a saída dos melhores alunos para outros estabelecimentos de ensino, caucionando assim a boa posição da escola no ranking de resultados. Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas de educação.
O objectivo inconfessado dos partidos da direita, que a proposta do cheque-ensino desvela, parece pois ser outro e inscreve-se na agenda ideológica de retracção do Estado, dos serviços públicos e dos direitos sociais. Trata-se, essencialmente, de assegurar a transferência de recursos do sistema público de educação para o ensino privado, custeando os percursos escolares de estudantes da classe alta e média-alta e não – como prometido – de beneficiar os alunos de classes sociais menos favorecidas, que continuariam a ver negado o acesso (ainda que, em principio, já não por razões económicas) aos reputados estabelecimentos de ensino do sector privado. Mas, mais grave do que isso, o próprio sistema público, cujo princípio de organização por áreas de influência geográfica das escolas tem permitido uma razoável convivência de alunos com diferentes origens económicas e sociais, ver-se-ia depauperado nos seus recursos (com impactos na qualidade de ensino) e submetido a uma lógica competitiva que é contrária à educação como direito e condição de cidadania.
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