13 fevereiro 2015

O que ganhou a Grécia em quinze dias?

Jorge Nascimento Rodrigues
(facebook)


Alguns terão a tentação de dizer que nada - e fazer a prova (do seu desejo) de que o "radicalismo" conduz a uma mão cheia de pó, pois esbarra com as forças "vivas" da Zona Euro e soçobra. Mas olhando, objetivamente, apenas para factos, somos levados a constatar que, em duas semanas, a Grécia já ganhou imenso.

● Um ganho que alguns poderão dizer que é simbólico, ou imaterial, ou do domínio do goodwill soberanista, que aparentemente não enche a barriga dos esfomeados e não faz entrar guito no orçamento - a Grécia recolocou-se no mapa, deixou de ser um país capacho, menor e marginal, ignorado e humilhado, tratado como um "protetorado" de um comité de credores; ganhou voz e subiu ao tablado, mundial inclusive; é manchete de pé e não de rodillas.

● A Grécia pós 25 de janeiro trouxe para a ribalta outra dimensão até há pouco esquecida debaixo do tapete nos debates dentro da UE e da zona euro - a importância geopolítica das charneiras da Europa. É ouvir, agora, os mais insuspeitos a falar abertamente do tema. Chegará o momento em que a importância das charneiras não será só centrada no Egeu ou no Mediterrâneo Oriental (se juntarmos Chipre à Grécia). Chegará o tempo de falar do Atlântico e da Península Ibérica.

● A postura do novo governo colocou pela primeira vez em causa no plano prático a troika como entidade política na negociação (uma investigação do Parlamento Europeu já havia colocado em questão a legitimidade de um tal comité); a negociação política é feita de igual para igual nos fora adequados, no Eurogrupo, bilateralmente com as chefias das entidades como a Comissão Europeia, o FMI, o BCE, e com os outros parceiros-países; as discussões técnicas deixam de ter relevância política; o país negoceia de cabeça erguida e com coluna direita com os parceiros, não atua como capacho de um comité.

● Os Memorandos da troika como "lei" são algo para o caixote do lixo. Magistral a atuação de Alexis Tsipras ao vetar no último minuto a aprovação de um comunicado final de uma reunião do Eurogrupo para no dia seguinte marcar o seu ponto obtendo o primeiro reconhecimento formal de que o memorando da troika já não é de facto a "lei"; o Eurogrupo vai debater um novo guia, não baseado num diktat, mas num compromisso que tem de atender aos pilares da posição grega sufragada pelo eleitorado. É um acordo com credores oficiais radicalmente distinto. É uma ruptura se for materializado.

● Com o passar dos dias, a tese de que o novo governo grego era uma espécie de grupo de amadores radicalóides, utopista, por ousar atirar o calhau ao charco, passará para a gaveta. O novo governo recuou em alguns pontos (como o hair cut nominal de "grande parte" da atual dívida que está em mais de 70% na mão de credores oficiais, ou uma iminente conferência europeia sobre essa "coisa", como lhe chama o presidente Cavaco Silva), para marcar terreno com eixos de "bom senso" técnico irrevogáveis: emergência humanitária; swaps de dívida para aliviar o serviço anual de dívida e alongar maturidades; redução dos excedentes primários orçamentais para libertar recursos anuais; elaborar uma proposta de reformas (onde vai trabalhar com a OCDE) exequíveis (algumas delas que só "radicais" são capazes de implementar) e equilibradas (não destinadas à desvalorização interna do factor trabalho).

● Um obscuro ministro, careca, vindo quase do exílio no Texas, tornou-se um improvável fenómeno mundial mediático, um ativo de marketing político.

● A atuação deste governo grego traz um benefício à democracia representativa. Agindo em função daquilo para que foram eleitos mostram ao eleitorado que vale a pena jogar o jogo da democracia e atuar no seio da União Europeia com a espinha direita sem a síndrome do capacho. Se a União Europeia respeitar essa regra básica do respeito democrático, esses eleitorados radicalizados e enraivecidos contra a austeridade e a humilhação nacional consolidarão a sua confiança na democracia. Se for hostilizado ou humilhado rejeitará a União Europeia. Tão simples quanto isso - e essas camadas tendencialmente maioritárias no eleitorado radicalizar-se-ão ainda mais. As principais vítimas serão os capachos e os profissionais da humilhação - desaparecerão do "arco da governação". RIP.

03 agosto 2014

Risco moral

Pedro Adão e Silva
Expresso, 2 de Agosto de 2014

Não passa uma semana sem que se ouça alguém argumentar que a generosidade do Estado social comporta um risco moral, na medida em que dá incentivos perversos aos seus beneficiários. Os pobres encostam-se ao rendimento mínimo e os desempregados ao subsídio de desemprego, alimentando uma cultura de dependência com efeitos perversos para o conjunto da sociedade.
Curiosamente, os mesmos que se apressam a falar de risco moral associado ao Estado social não aplicam a mesma bitola ao comportamento de banqueiros. É sintomático e vale a pena colocar a questão em perspetiva. Portugal gasta hoje, por ano, com o RSI, perto de 300 milhões de euros, que servem para atenuar a pobreza de quase 250 mil portugueses; já com o subsídio de desemprego gastamos 2 mil milhões de euros, para cerca de 300 mil beneficiários. Agora comparem com o que temos tido de pagar para compensar os comportamentos moralmente inaceitáveis de muitos banqueiros. E, com o que se vai sabendo do universo BES, o futuro anuncia-se, a este propósito, muito sombrio.
Reparem, já passaram seis anos desde o deflagrar da crise e não passa uma semana sem que sejamos confrontados com um novo escândalo no sistema financeiro. É verdade que as personagens vão mudando, assim como a artimanha: por vezes é o tipico esquema Ponzi, com o caso Madoff, outras é a manipulação das taxas de juro, como foi feito por um consórcio bancário com a Libor; ou, para ficarmos por Portugal, a criação de veículos para autofinanciamento, o BCP; ou, ainda por cá, casos extremos, de associação criminosa, de que o BPN é exemplo de manual.
É um facto que seis anos passados do início da crise financeira e mesmo após várias tentativas para reformar o sistema, os escândalos bancários sucedem-se. A questão fundamental é que ainda não temos uma explicação cabal que nos permita perceber este padrão. Há, contudo, boas razões para acreditar que a explicação para os escândalos é bem profunda e não resulta apenas da ação de uns quantos banqueiros, mas, sim, dos incentivos dados por uma cultura institucional que promove comportamentos moralmente inaceitáveis.
O verdadeiro risco sistémico está no quadro organizacional e de regulação do sistema bancário. A combinação de opacidade na forma como os bancos se organizam e financiam e a complexidade dos seus modelos de governação, multinacionais e assentes em offshores articulados com paraísos fiscais (por exemplo, o Luxemburgo, que até deu um Presidente à Comissão), condena a ação dos reguladores ao fracasso. O que revela que, enquanto andámos entretidos na Europa a promover as miríficas reformas estruturais, que iriam devolver a competitividade às economias, ou a restaurar os Estados sociais, fomo-nos esquecendo onde estava o epicentro da crise. No sistema financeiro.

16 março 2014

Ministra das Finanças jura que a dívida portuguesa é sustentável: «Basta não pagar salários e pensões durante um ano»

Inimigo Público
14 de Março de 2013

O manifesto dos 70 mexeu com os 70 neurónios da equipa das Finanças. Na quarta-feira, Maria Luís Albuquerque foi contra um microfone e explicou aos dez milhões de ignorantes que governa que a dívida de 130% do PIB é sustentável e será paga com uma perna às costas, mesmo com os picos de reembolso que atingem 48 mil milhões de euros até 2017. «Basta encontrar um lençol de petróleo do tamanho da Beira Baixa ou deixar de pagar ordenados, apoios e pensões durante um ano», explica a ministra. «Ou, lembrei-me desta agora, o Sporting produzir um Cristiano Ronaldo por dia até 2025», ri-se a senhora.

12 novembro 2013

O Estado paralelo

Pedro Adão e Silva
Expresso, 2 de Novembro de 2013

Se fizermos o exercício exigente de procurar racionalidade na ação deste Governo, talvez seja possível identificar dois momentos no processo de "reforma" do Estado. Num primeiro momento, o objetivo essencial era deslegitimar a ação do Estado, tornando-o crescentemente ineficaz; num segundo, com um contexto mais propício ao seu desmantelamento, ficaria aberta a porta à criação de novos mercados - na saúde, educação e segurança social.
Num primeiro momento, não era necessário guião nenhum. De facto, só quem pretende construir alguma coisa precisa de um guia que indique o caminho; como é sabido, para destruir não são necessárias instruções. Um pouco como quando construímos um lego. Apenas com instruções as peças fazem sentido e somos capazes de visualizar o resultado final, mas quem tenha visto uma criança a desmanchar um lego sabe bem que, nessa altura, o manual de instruções é desnecessário.
Foi isso mesmo que se fez nos últimos dois anos. Cortes sem critério e total paralisia de setores fundamentais do Estado, nomeadamente da administração central. Com consequências conhecidas: a confiança dos cidadãos no Estado desapareceu e, não menos importante, acelerou-se como nunca o processo de degradação do saber instalado na administração pública. Com um Estado deslegitimado e descapitalizado, ficámos todos mais frágeis.
Mas se um lego destruído é, desde que tenhamos o guião certo, reconstruível, já a confiança e a capacidade institucional são irrecuperáveis. Uma vez destruídas, torna-se muito difícil reconstruí-las.
E assim chegámos ao segundo momento. Entre a indigência intelectual e política que marcam o guião apresentado por Paulo Portas (que provoca vergonha alheia), emerge uma ideia paradoxal. O mesmo Governo que prometeu combater o Estado paralelo tem como objetivo criar um universo de mercados, dependentes do Orçamento de Estado, que passaria a prestar serviços até aqui assegurados pelo Estado.
Estamos perante uma proposta de reforma que visa, de facto, fazer crescer exponencialmente o Estado paralelo. Da saúde à educação, passando pela segurança social, a ideia é sempre a mesma: contratualização de serviços públicos com privados, assegurando o financiamento público de negócios privados.
Esse Estado paralelo já existe hoje em Portugal e o que o caracteriza é a pouca transparência e a ausência de regulação e escrutínio. Sabemos que, nas funções sociais, todos os anos são transferidos do Estado para entidades (para) privadas milhões de euros. Mas sabemos pouco sobre a eficiência com que os recursos são aplicados, o controlo das contas é menor do que na administração pública e a gestão dos recursos humanos assenta em princípios demasiado flexíveis.
Para início de conversa em torno da reforma do Estado, talvez valesse a pena fazer uma avaliação rigorosa do que se passa neste Estado paralelo - formado por escolas, creches, lares e hospitais geridos privadamente mas financiados por recursos públicos. Mas pedir estudo, avaliação e rigor a este Governo é, objectivamente, exigir de mais.

19 outubro 2013

O espelho enlameado

Jorge Nascimento Rodrigues
19 de Outubro de 2013 (facebook)

A Comissão Europeia é provavelmente hoje o espelho da falência da gestão da crise da dívida e dos resgates - mais do que o FMI inclusive, que sempre insistiu em mais capacidade de manobra (como no caso, hoje de antologia, da Grécia ao defender desde cedo a reestruturação de dívida e uma não concentração de chofre do ajustamento).
Por debaixo daquela prosápia do dr Barrosão ou do inefável Òllio de Rehna está uma sequência de políticas que falharam os seus próprios propósitos:
● A austeridade expansionista, uma patranha pseudo-académica miseravelmente denunciada pela realidade;
● O incumprimento de metas de défices orçamentais absurdas em 3 anos, sucessivamente "revistas";
● A surpresa cínica com o disparo do desemprego e da emigração desesperada;
● A destruição do tecido económico para além de um shumpeterianismo de algibeira de "destruição criativa";
● Uma pseudo-reforma dos Estados "despesistas", "reforma" que vive do confisco dos seus funcionários, dos reformados e dos contribuintes;
● Uma concentração financeira e da oligarquia empresarial ainda maior do que no início da crise, e contra o propalado discurso inicial contra os pecados da finança (na altura, "americana") que levaram ao colapso de 2008;
● O ludibriar dos companheiros de estrada que acreditavam na promoção do "empreendedorismo" e da meritrocracia, do mundo florescente das PME "globais" e da limpeza das anti-competitividades; salvo alguns que vivem no ecossistema, a maioria está hoje arrasada;
● A intromissão infame nas soluções governativas dos países que gerou o caos em Itália e uma quase vitória do Syriza na Grécia e a emergência da Aurora Dourada.
Dar guia de marcha a esta Comissão no próximo ano é um acto de higiene europeia.

16 outubro 2013

Direcção do CDS teme que segundo resgate imponha um "pacto constitucional"

São José Almeida
Público, 16 de Outubro de 2013

Paulo Portas discutiu com membros da comissão directiva do CDS a necessidade de o partido aceitar as medidas draconianas de cortes nas prestações sociais e a redução dos salários da função pública que estão inscritas no Orçamento de Estado para 2014, alegando que, na sua opinião, este é o mal menor para Portugal.
A alternativa, garantiu o vice-primeiro-ministro aos seus pares de direcção, de acordo com as informações obtidas pelo PÚBLICO, poderia conduzir à ingovernabilidade, já que poderia levar a um novo memorando com contornos de "pacto constitucional".
Paulo Portas está convencido de que o PS nunca aceitaria tal acordo. E assumiu perante a sua direcção que cabe ao CDS defender que se preserve o quadro constitucional vigente, com o qual este partido historicamente não concorda, pois foi o único que votou contra a Constituição em 1976.
O líder do CDS e vice-primeiro-ministro, com a responsabilidade de negociar a situação portuguesa com a troika, assumiu perante membros da direcção do partido que existe o risco de Portugal entrar em incumprimento dos compromissos actuais, por incapacidade de atingir as metas acordadas até aqui, e se ver então obrigado a recorrer a um segundo empréstimo, ainda que este viesse a adquirir a fórmula de um plano de apoio e não tanto o estatuto de segundo resgate.
Nesse caso, avisou o líder do CDS, no acordo que viesse a ser assinado para o Estado português receber financiamento, seria exigido pela Comissão Europeia que os partidos do arco de governação, ou seja, o PSD, o PS e o CDS, aceitassem deixar explícito que se comprometiam a alterar o perfil do modelo de Estado que está inscrito na Constituição.
Assim, o presidente do CDS e vice-primeiro-ministro, que tem conduzido as negociações com a troika e que negociou as oitava e nona avaliações do cumprimento do acordo do memorando, deixou claro aos seus pares de direcção que, depois dos chumbos que têm sido feitos pelo Tribunal Constitucional, ficou explícito para os credores que há uma incompatibilidade entre a leitura que o Tribunal Constitucional faz da Constituição portuguesa, mesmo em estado de emergência financeira, e aquilo que é a transformação do modelo do Estado português que essas mesmas instituições exigem ao país.
Daí que Portas tenha a percepção de que qualquer novo resgate financeiro a Portugal, adquira ou não este nome, irá ser feito com exigências que passam pela explicitação de que os partidos portugueses que podem ocupar o governo aceitam a transformação do perfil constitucional do Estado português. Uma exigência que o líder do CDS considera que nunca será aceite pelo PS. Temendo assim que, perante tal cenário, a governabilidade possa ser substituída pelo caos.
Esta visão pessimista de Paulo Portas foi argumentada pelo próprio aos seus pares de direcção com base na experiência que teve durante a oitava e nona avaliações. O vice-primeiro-ministro transmitiu a ideia de que as entidades que compõem a troika terão mudado de atitude em relação a Portugal. E que terá chegado ao fim uma certa condescendência com que o país era visto. Sobretudo num momento em que a Grécia começa a dar sinais positivos, depois de ter lidado com medidas muito mais fortes que as aplicadas a Portugal. E em que a Irlanda, que fez cortes de despesa pública radicais logo de início, se prepara para regressar aos mercados para se financiar.

06 setembro 2013

«Liberdade para escolher»: o irrealismo perverso do cheque-ensino

Nuno Serra
Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), N.º 48, Outubro de 2010

Na famosa obra de George Orwell, Mil novecentos e oitenta e quatro, uma das funções da novilíngua consistia em dissolver o «pensamento herético» através do esquecimento ou da alteração radical do sentido das palavras e das coisas. Na Oceânia cinzenta habitada por Winston Smith, personagem central da narrativa, a responsabilidade pela condução da guerra, por exemplo, cabia ao Ministério da Paz, tal como a lei e a ordem eram asseguradas pelo Ministério do Amor.
É difícil não lembrar o romance de Orwell a propósito do regresso recente, nos tempos de crise que atravessamos, do discurso liberalizante que a fórmula «menos Estado, melhor Estado» encerra, e sob a qual se pugna por uma retracção generalizada e sistemática da esfera de governação e de provisão pública em matéria de direitos sociais.
No domínio da educação, uma das propostas assumida de forma explícita no projecto de revisão constitucional apresentado pelo PSD, e desde há muito defendida pelo CDS-Partido Popular (CDS-PP), tem um alcance aparentemente simples e sedutor junto da opinião pública: em nome da liberdade de ensino, pais e alunos deveriam poder passar a escolher, sem restrições, a escola que os filhos desejassem frequentar. Para tal, caberia ao Estado atribuir um cheque-ensino às famílias, cujo montante seria estimado através do rácio por aluno calculado a partir da actual despesa do Ministério da Educação com as escolas do sistema público. Deste modo, os agregados familiares poderiam escolher livremente o estabelecimento de ensino pretendido no seio de uma nova rede escolar, alargada, que a proposta de revisão constitucional igualmente preconiza (e que passaria a integrar, além das públicas, as escolas particulares e cooperativas).
Esta proposta não tem, curiosamente, a mesma motivação financeira (associada à redução do défice público) que se en contra nas propostas de revisão constitucional tendentes a alterar as regras de acesso ao Sistema Nacional de Saúde (nomeadamente através do fim da sua gratuitidade, já de si tendencial, para os cidadãos com rendimentos mais elevados). Nos termos em que é apresentado, o cheque-ensino visaria apenas alargar a igualdade de oportunidades de acesso de todos os alunos às melhores escolas, nomeadamente aos estabelecimentos de ensino do sector privado. E beneficiaria, essencialmente, os estudantes mais desfavorecidos, que por essa razão não dispõem de condições económicas para estudar nos colégios privados que as elites frequentam.
Esta ideia alimenta-se, desde logo, de uma convicção que se foi instalando gradualmente na sociedade portuguesa, segundo a qual o ensino privado tem uma qualidade manifestamente superior à do ensino público. Sendo certo que há razões que tornam compreensíveis as diferenças observadas (como a tendência para que as escolas privadas sejam de menor dimensão, se organizem em turmas constituídas com um menor número de alunos e apresentem um funcionamento orgânico em regra mais consolidado), a realidade está longe de sustentar o modo categórico e abissal com que esta diferença é recorrentemente apresentada. Mas vamos por momentos admitir que esta convicção, relativa à supremacia do ensino privado em matéria de qualidade, é verdadeira e, simultaneamente, admitir a bondade de intenções subjacente à proposta de criação do cheque-ensino. Para que a sua introdução não comporte um reforço do orçamento do Ministério da Educação, o financiamento da medida teria de ser forçosamente suportado pela redução dos actuais encargos com a rede pública de Ensino Básico e Secundário. E assim sendo, como pretendido, as escolas passariam então a ter que competir pelos alunos, de modo a ver financeira mente assegurado o seu regular funcionamento.

A novilíngua em educação: marginalização é liberdade

Baseando-se na delimitação geográfica das áreas de influência de cada estabelecimento de ensino, a legislação em vigor obriga de facto, tendencialmente, a que um aluno apenas se possa inscrever na escola pública da sua área de residência (ou num estabelecimento de ensino situado na proximidade do local de trabalho dos seus pais). Perante estes critérios, que habitam em plenitude um despacho nesse sentido do Ministério da Educação, mas que não têm tradução exaustiva na realidade (dado serem bem conhecidos os expedientes a que recorrem as famílias para contornar estas regras), o cheque-ensino representaria – segundo os seus proponentes – uma verdadeira revolução.
De facto, a liberdade de escolha que a medida proporcionaria é-nos apresentada de uma forma tão épica, que, por momentos, quase nos esquecemos que a vida das pessoas decorre num quadro espaço-temporal que é, por natureza, relativamente limitado. Isto é, quase nos esquecemos que as escolhas acabam sempre por estar circunscritas às fronteiras do espaço de vida quotidiano (que é físico, mas também social), tornando improvável que um aluno de Carrazeda de Ansiães possa optar por frequentar o melhor colégio de Lisboa, sem que tal implique uma necessária mudança de residência. Ou seja, o cheque-ensino pode, em teoria, ampliar as possibilidades de escolha de um estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias, mas tal não significa, na prática, uma mudança tão substancial como se pretende fazer crer face ao que são as reais possibilidades e mecanismos de escolha de que os alunos, actualmente, dispõem.
A este irrealismo no modo como a proposta do cheque-ensino é apresentada junta-se um outro, que arrasta consigo a profunda perversidade da medida. De facto, é legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do «vale» que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que supostamente exerçam em plenitude o seu direito à liberdade de escolha em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos.
Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings (sistemas de classificação) de resultados escolares – que são uma espécie de agências de rating (notação) para a educação –, de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino.
Ou seja, as escolas passariam a escolher os alunos que pudessem manter a sua reputação num nível elevado, de excelência, o que significa que seriam prioritariamente cooptados os estudantes mais promissores, isto é, aqueles que exibem melhores resultados escolares em anos precedentes.
Esta «selecção natural», feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão, por alunos provenientes de «castas inferiores», seria significativa. Sem surpresa, surgiriam muito provavelmente pressões sobre a direcção destas escolas para que não fossem aceites alunos com trajectórias escolares menos exuberantes ou, em alternativa, assistir-se-ia a uma tendência para a saída dos melhores alunos para outros estabelecimentos de ensino, caucionando assim a boa posição da escola no ranking de resultados. Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas de educação.
O objectivo inconfessado dos partidos da direita, que a proposta do cheque-ensino desvela, parece pois ser outro e inscreve-se na agenda ideológica de retracção do Estado, dos serviços públicos e dos direitos sociais. Trata-se, essencialmente, de assegurar a transferência de recursos do sistema público de educação para o ensino privado, custeando os percursos escolares de estudantes da classe alta e média-alta e não – como prometido – de beneficiar os alunos de classes sociais menos favorecidas, que continuariam a ver negado o acesso (ainda que, em principio, já não por razões económicas) aos reputados estabelecimentos de ensino do sector privado. Mas, mais grave do que isso, o próprio sistema público, cujo princípio de organização por áreas de influência geográfica das escolas tem permitido uma razoável convivência de alunos com diferentes origens económicas e sociais, ver-se-ia depauperado nos seus recursos (com impactos na qualidade de ensino) e submetido a uma lógica competitiva que é contrária à educação como direito e condição de cidadania.

06 agosto 2013

Riem-se na sua cara

Rui Tavares
Público, 5 de Agosto de 2013

Escrevo estas linhas numa aldeia ribatejana de fim de estrada, onde só se escuta a camioneta da carreira, até ao dia em que acabarem com isso também. E, no entanto, até aqui os ouço. Riem-se na minha cara. Riem-se na cara de todos os intelectuais, bem intencionados, politizados desde a nascença, que passaram a vida a dizer aos amigos: «Sabes o que era bom, para mudar o mundo?» - «Abrir uma editora», «abrir um jornal», «abrir uma universidade», «criar um partido», «fundar um centro de estudos».

Riem-se, porque eles um dia disseram: «Sabem o que é preciso, para fazer política a sério?» - «Abrir um banco». E a partir daí foi só rir.

Riram-se na sua cara quando fundaram o BPN, como uma espécie de Herdade da Coelha das instituições financeiras, um lugar confortável para quem tinha estado no PSD e no governo do Professor Cavaco.

Riram-se quando concederam a filhos e esposas empréstimos de milhões que não tinham intenções de jamais reembolsar. Riram-se quando ex-ministros criaram empresas fictícias para comprar acções do próprio banco.

Riram-se, talvez de nervoso muidinho, quando as coisas começaram a correr mal. Há um mail em que procuram apressadamente novos membros do Conselho: «Este, que é do PS», «aquele, que é amigo do primeiro-ministro». Os tempos tinham mudado as caras em São Bento, era preciso acautelar as coisas.

Riram-se quando o banco foi à falência. De alívio. Foi você que pagou a conta e eles, bem, desde que não fossem apanhados a matar alguma velhota, tudo haveria de correr bem.

Riem-se na cara de todos os adeptos que passam três horas em frente à TV a discutir um penálti mal marcado. Afinal, um lucro de 150% em ações compradas com dinheiro do vendedor e vendidas outra vez ao mesmo é que é «limpinho, limpinho, limpinho». Mesmo quando se é presidente do Conselho Superior, como o ministro Rui Machete, não há nada para estranhar. Você, quando acha 25 euros na algibeira onde pensava ter só 10 euros, estranha? E se forem 25 milhões? E se tiver mais meia dúzia de conselhos para presidir?

Eles riem-se na cara da classe média, da classe baixa e até da classe alta. Eles não têm medo da luta de classes, porque eles acham isso fora de qualquer cogitação: eles estão para lá de qualquer classe. No mundo deles, há regras especiais que são só para eles. Por isso riem-se de cada pedido de demissão: sabem que a oposição nunca se vai entender para mais do que pedir a demissão.

Riem-se na sua cara, quem quer que você seja. Riem na cara da aposentada de Bragança, do funcionário público de Coimbra, do rapper da Brandoa, do comerciante falido do Porto, do desempregado e do emigrado e do pós-graduado que procura um bilhete low-cost para vir a casa. Riem-se na cara dos que tiveram que mudar de país por não mudar o país. Riem-se na cara dos que mudaram para o outro país, o país do Facebook, o país dos manifestos e petições, o país do «eles são todos iguais», o país da indignação na expectativa.

Riem-se na cara do intelectual bem intencionado que nem sabe sentir raiva direito e que, por causa dos livros de História, tem prurido em escrever «eles» e «nós».

Afinal, eles sempre souberam que havia eles e nós.

05 agosto 2013

Brincar aos ricos

Filipe Luís
Visão, 1 de Agosto de 2013

Tornou-se viral, nas redes sociais, a reportagem publicada na revista do Expresso, sobre o «refúgio das elites» da Comporta. Viral, sobretudo, a crítica aos critérios editoriais do semanário e a descompostura colectiva à frase de uma das entrevistadas, Cristina Espírito Santo, onde, por se viver ali «em estado mais puro», estar na Comporta seria como «brincar aos pobrezinhos». Sobre os critérios jornalísticos, nada a dizer. É uma reportagem interessante, publicada na época certa do ano, que nos dá uma perspectiva de um mundo pouco conhecido do comum dos portugueses, e que nos diz que, apesar da crise, há quem continue a safar-se - o que é notícia de interesse público. Condenar a reportagem é matar o mensageiro. Uma estupidez, portanto.

Mas debrucemo-nos sobre a polémica frase da entrevistada. Para já, e ao contrário do que defenderam os talibans do facebook, ela não define o carácter da sua autora nem nos indica que ela se move por alguma espécie de intenção malévola de amesquinhar os portugueses, num tempo em que todos parecem caminhar para um «estado mis puro» de pobreza. Miguel Sousa Tavares assinalou que o facebook é a maior ameaça do século XXI. Ao contrário do que parece, é, pelo menos, a maior ameaça à liberdade de expressão... Assim, as críticas fáceis e a indignação piedosa rapidamente queimaram Cristina Espírito Santo na santa fogueira do face. É caso para dizer: pobrezinha!

Não, aquela frase não é suficientemente nobre para suscitar a indignação de ninguém. Ela deve, antes, ser analisada cientificamente. É matéria para a antropologia social: em 2013, ano pior da nossa vida colectiva recente, ainda existe gente que continua a ter da pobreza uma imagem romântica, que o salazarismo consagrou ideologicamente e cinco anos de empobrecimento súbito recente não abalaram. «Pobre mas remendado», eis como Salazar via o país. E eis como Cristina Espírito Santo vê o «estado mais puro»: «Pintei-a [à casa], renovei-a. Fiz uma boa casa de banho. Mas deixei a estrutura de origem, com colmo em determinadas zonas. Muito rústica. (...) É como brincar aos pobrezinhos».

Os que retêm da pobreza a rusticidade e o pitoresco nunca viram um pobre. Não entraram numa mansarda sem água corrente, não mandaram os filhos para a escola sem uma refeição, não passam frio por falta de dinheiro para o aquecimento, não morreram de doença por não poderem pagar uma taxa moderadora. Não conhecem o estigma do desemprego, nunca leram, viram ou escutaram a sociedade à sua volta. É por isso que a frase é, do ponto de vista do caso de estudo, tão interessante: ainda há gente assim! E essa gente merece ser, não criticada, mas estudada, como se estuda uma avis rara.

A política europeia de resgate à banca e apoio aos banqueiros, especuladores e grandes grupos económicos, a circulação e fuga de capitais, a evasão fiscal e a existência de offshores em muito contribuem para que os nossos pobrezinhos não possuam moradias rústicas, com o charme de algumas coberturas de colmo e «uma boa casa de banho». E também contribuem para que haja quem ignore essa realidade.

Nada nos diz, portanto, que Cristina Espírito Santo seja uma pessoa má ou insensível. A sua frase, que tantos condenaram apressadamente, apenas nos diz que se trata de uma pobre de espírito - a brincar aos ricos.

04 julho 2013

Defeitos e virtudes de Gaspar

João Miguel Tavares
Público, 2 de Julho de 2013

A verdadeira carta de demissão de Vítor Gaspar não foi aquela que ontem apresentou a Pedro Passos Coelho. Foram as declarações que proferiu no início de Junho, à margem de uma conferência em Lisboa. Instado pelos jornalistas a comentar os erros que cometeu durante a sua passagem pelo governo, Gaspar respondeu com uma inesperada frontalidade: «Tenho o maior gosto em discutir erros, mas apresentar uma lista seria demasiado demorado. Deixe-me apontar-lhe apenas um, que me parece importante.» E, pela boca do próprio ex-ministro das Finanças, ficámos a saber que o maior dos seus erros foi este: «Pensei que se poderia dar prioridade à consolidação orçamental e à estabilização financeira sem uma transformação estrutural profunda das administrações públicas. Neste momento, é claro que um esforço muito mais concentrado, desde o primeiro dia, na transformação das administrações públicas, teria sido mais apropriado.»

Rui Ramos, no Expresso, chamou a atenção para este extraordinário desabafo de Vítor Gaspar, mas de um modo geral ninguém ligou patavina àquela que foi provavelmente a mais importante declaração política que fez durante os pouco mais de dois anos que esteve à frente do Ministério das Finanças. Gaspar anunciava a quem o quisesse ouvir que no início do seu mandato pensava conseguir pôr ordem nas contas públicas sem efectuar uma profunda reforma do país, e que esse pensamento provara-se, afinal, errado.

Por aqui, ninguém o pode acusar de desonestidade intelectual, e há que admirar a candura com que, na sua carta de demissão, admite ter falhado: «A repetição de desvios minou a minha credibilidade enquanto ministro das Finanças.» Fossem todos os políticos tão sinceros e seríamos todos mais felizes. No entanto, se Gaspar não pode ser acusado de desonestidade intelectual, o primeiro-ministro pode: afinal, a tão famosa e badalada reforma do Estado era, desde o início, apenas um elemento decorativo no programa eleitoral do Governo, um bibelô para enganar eleitores incautos. O homem «que se lixem as eleições» tentou o velho equilibrismo nacional, todo ele muito eleitoralista, que consiste em apostar não na estratégia do bom aluno, mas na do aluno calão: esforçar-se ao máximo para fazer o mínimo, apenas o suficiente para ir passando nos exames da troika. Só que o mínimo, como se vê, não chegou.

Gaspar sai após se dar conta da dimensão do seu erro, e por provavelmente não se sentir com força política para o corrigir. Eu tenho boa impressão de Maria Luís Albuquerque, mas o rali argumentativo a que tem sido obrigada por causa dos swaps não augura nada de bom. Estando o país a meio de um programa de assistência, compreende-se a aposta em quem conhece os dossiês, mas um ministro das Finanças não devia entrar no Terreiro do Paço a fugir de uma barragem de perguntas incómodas. Pior: ao ser despromovida a número três do governo, trocando com Paulo Portas, ninguém tem dúvidas de quem ganhou o braço-de-ferro da «coesão da equipa governativa». Ou muito me engano, ou a famosa reforma do Estado que Portas se prepara para apresentar vai ser uma mão-cheia de nada e outra de coisa nenhuma, mais centrada na baixa de impostos do que na real diminuição do peso da administração pública. Vítor Gaspar cometeu inúmeros erros, mas a ausência de calculismo político era uma garantia contra os eleitoralismos. Agora isso acabou. E eu duvido que o país vá ficar melhor.

Juros da dívida a 10 anos (último semestre)

Fonte: Bloomberg (clicar para ampliar)

17 junho 2013

Renegociar já, mas não como os credores querem

José Castro Caldas
Público, 17 de Junho de 2013


Com as intervenções da troika, uma parte importante da dívida grega e portuguesa passou de mãos dos credores privados, internos e externos, para a de credores oficiais - o FMI, o BCE e os fundos da União Europeia. Para isso serviram os resgates: para transferir dívida pública tóxica do sector privado para o sector público.

Quem agora o reconhece, com a mais desavergonhada candura, é o FMI no relatório sobre a Grécia que recentemente veio a público: "Uma reestruturação à partida teria sido melhor para a Grécia, apesar de isto não ser aceitável pelos parceiros do euro. Uma reestruturação atrasada também criou a janela para os credores privados reduzirem a sua exposição e mudarem a dívida para as mãos de credores oficiais (FMI, BCE e instrumentos europeus). Esta mudança ocorreu numa escala significativa e limitou um bail in (resgate envolvendo os detentores de títulos de dívida)... deixando os contribuintes e os Estados com a responsabilidade de pagar".

Compreende-se assim que, "à partida", os banqueiros não quisessem nada com a reestruturação da dívida. "Temos de evitar a reestruturação da dívida o mais possível porque se fizermos perder dinheiro àqueles que nos emprestaram dinheiro, esses não vão voltar a emprestar outra vez", disse José Maria Ricciardi, segundo o jornal Sol, no dia 27 de Dezembro de 2011.

E compreende-se também que a opinião agora comece a mudar. "Se até 2014 a economia não crescer, vai ser necessário reestruturar a dívida", disse o mesmo Ricciardi em entrevista ao Jornal de Negócios na semana passada.

Não era difícil perceber o que devia ser feito em 2010 na Grécia e em 2011 em Portugal - Grécia e Portugal deviam ter desencadeado uma renegociação da dívida tendente à sua reestruturação. Mas a reestruturação atempada da dívida teria feito "perder dinheiro àqueles que nos emprestaram dinheiro" e isso era inaceitável para quem condicionava e acabou por determinar as decisões políticas do momento - os bancos e os fundos de investimento.

A situação agora é outra. Agora, perante os resultados da austeridade, interessa aos banqueiros garantir a cobrança de alguma coisa antes que as vítimas da austeridade se tornem incapazes de pagar o que quer que seja. Por isso falam de reestruturação da dívida.

Será que isso significa que a renegociação da dívida e a sua reestruturação já não interessa aos povos da Grécia e de Portugal? É claro que interessa. Só a renegociação, acompanhada de uma moratória, e a reestruturação, com anulação de uma parte do valor da dívida, redução das taxas de juro e alongamento das maturidades, pode reduzir o peso dos juros na despesa pública, evitar o colapso da provisão pública de bens e serviços e libertar recursos para o investimento e a criação de emprego.

Mas a reestruturação de que Portugal e a Grécia precisam não é a dos credores. Aos credores interessa aliviar o fardo para que o "animal" continue a ser capaz de puxar a carroça. Aos povos grego e português interessa alijar a carga para caminhar em frente, sem condições impostas pelos credores.

A renegociação tendente à reestruturação da dívida de que precisamos tem de ser conduzida em nome do interesse nacional, contra o interesse dos grandes credores e salvaguardando os pequenos aforradores. O Estado português tem de tomar a iniciativa e conduzir todo o processo.

Mas o Governo português, o Presidente da República e a maioria dos deputados da Assembleia da República fingem não perceber. Estão sentados à espera que os credores mandem. Em contrapartida, cresce na sociedade a compreensão da necessidade de agir.

A Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC), que desde a sua fundação em Dezembro de 2011 tem vindo a conhecer e dar a conhecer a dívida pública (ver o relatório "Conhecer a dívida para sair da armadilha"), lançou, em conjunto com outras organizações, a campanha Pobreza não paga a dívida: renegociação já!

Responde esta campanha à necessidade sentida pela IAC de complementar o trabalho de estudo e análise da dívida pública, que prosseguirá, com mais debate público sobre as causas e as consequências da dívida e mobilização pela sua renegociação com a participação dos cidadãos.

A campanha envolve uma petição dirigida à Assembleia da República, instando-a a pronunciar-se pela abertura urgente de um processo de renegociação da dívida pública, pela criação de uma entidade para acompanhar a auditoria à dívida pública e o seu processo de renegociação e pela garantia de que nestes processos existe isenção de procedimentos, rigor e competência técnicas, participação cidadã qualificada e condições de exercício do direito à informação de todos os cidadãos e cidadãs.

Trata-se de fazer ouvir em S. Bento uma opinião e uma vontade que acreditamos ser maioritária na sociedade portuguesa.

É certo que quando tudo está a arder uma petição parece pouco. No entanto, com um número pouco usual de assinaturas, a petição terá força. Confrontando os membros da Assembleia da República com as suas responsabilidades, poderá acordá-los para a necessidade de não fazer o que os credores querem.

A petição pode ser subscrita online aqui: «Pobreza não paga a Dívida: Renegociação já!»

28 maio 2013

Memórias portuguesas (triviais e pessoais)

Paul Krugman
The New York Times, 27 de Maio de 2013

Não quis misturar este texto com o meu post mais substantivo sobre Portugal. Mas alguns leitores talvez possam estar interessados em conhecer certas memórias sentimentais da minha juventude.

Estava-se em 1975, pouco tempo depois do derrube da ditadura que governou o país durante meio século. O governador do Banco de Portugal, José da Silva Lopes, telefonou ao seu velho amigo Dick Eckaus, professor no MIT, para ver se ele podia conseguir que algumas pessoas de lá pudessem ir a Portugal e oferecer consultoria especializada. Apareceu uma equipa composta (tanto quanto me lembro) por Eckaus, Rudi Dornbusch e Lance Taylor (e tenho a certeza que o Bob Solow também foi). Tudo indica que eles tenham feito um óptimo trabalho, coligindo as contas nacionais, entre outras coisas, e Silva Lopes quis mais. Mas infelizmente os seniores da faculdade do MIT já não estavam disponíveis.

Assim, no verão de 1976 arranjaram cinco estudantes do MIT: Miguel Beleza (um português, que viria a tornar-se governador do Banco de Portugal e ministro das Finanças), Andy Abel, Jeff Frankel, Ray Hill (que foi depois para o privado) e eu. A avaliar pelas posteriores reputações académicas, conseguiu-se um grupo e tanto! No ano seguinte, já agora, conseguiram recrutar David Germany, Jeremy Bulow e, adivinhem quem, Ken Rogoff.

No verão de 1976 Portugal era um lugar interessantemente estranho - estava ainda numa situação um pouco caótica, em resultado do golpe de Estado e da retirada do seu império africano (os hotéis estavam cheios de «retornados» vindos de África, aí colocados temporariamente). Lisboa assemelhava-se por vezes a um fóssil, com muita da sua aparência e das suas infraestruturas a evidenciar escassas mudanças em relação à era Eduardiana. A democracia ainda vacilava, com os cartazes maoistas, espalhados em toda a parte, a induzir em erro. A esquerda democrática tinha ganho de forma absolutamente decisiva no momento em que chegámos (apesar de a televisão ainda estar a mostrar programas da Alemanha de Leste sobre tractores e de as salas de cinema estarem a passar pornografia ocidental com uma década de atraso).

O país era, em suma, fascinante, amável, mas ainda muito pobre.

Estivemos numa conferência de reencontro 25 anos mais tarde e Lisboa, para ser sincero, decepcionou-me um pouco: mesmo que encantadora, tinha-se tornado numa cidade europeia normal. Mas essa normalidade significava, como todos na altura reconhecemos, uma coisa maravilhosa: Portugal tinha emergido de uma longa e conturbada história para se tornar parte do patamar elementar de decência do Modelo Social Europeu.

E é tudo isso que está agora ameaçado.

Às vezes encontro europeus que dizem que as minhas duras críticas à troika e às suas políticas significam que eu sou anti-europeu. Pelo contrário: o projecto europeu, a construção da paz, da democracia e da prosperidade através da União é uma das melhores coisas que já aconteceu à humanidade. E é por isso que as políticas erradas, que estão a fragmentar a Europa, são uma enorme tragédia.

Adenda: uma fotografia pouco nítida mas mesmo assim embaraçosa; Beleza, Abel, Frankel e eu:


Pesadelo em Portugal

Paul Krugman
The New York Times, 27 de Maio de 2013

O Financial Times publicou um extenso retrato, profundamente deprimente, da situação que hoje se vive em Portugal, dando destaque às condições que as empresas familiares estão a atravessar – elas que sempre foram o cerne da economia e da sociedade portuguesa e que agora se afundam em massa.

É disto mesmo que se trata. E por isso, quem quer que seja, e que ocupe não importa que lugar no debate actual - um político no activo ou um simples analista que olha para a realidade a partir do exterior - deve concentrar-se, acima de tudo, em saber como e porquê se está a permitir que este pesadelo aconteça de novo, três gerações depois da Grande Depressão.

Não me venham dizer que Portugal seguiu más políticas no passado e que tem problemas estruturais profundos. Claro que tem, como todos os países têm. Mas mesmo que se possa dizer que a situação de Portugal é mais grave que a de outros países, como pode pensar-se que a forma para lidar com esses problemas reside em condenar um elevado número de trabalhadores disponíveis ao desemprego?

A resposta para o tipo de problemas que Portugal agora enfrenta, como já sabemos há muitas décadas, é uma política monetária e fiscal expansionista. Mas Portugal não pode adoptar essa política por conta própria, dado que já não dispõe de moeda própria. Ou seja, das duas uma: ou o euro deve acabar ou algo deve ser feito para que ele funcione. Porque aquilo a que estamos a assistir (e que os portugueses estão a experienciar) é inaceitável.

O que é que poderia ajudar? Uma expansão mais forte da zona euro como um todo e uma inflação mais elevada nos países do centro europeu. Uma política monetária mais suave poderia ajudar a alcançar esses objectivos, tendo em conta que o BCE, como o Fed, é basicamente contra o limite inferior nulo. O BCE pode e deve tentar implementar políticas não convencionais, mas é necessária a máxima ajuda possível ao nível da política orçamental e não uma situação em que a austeridade na periferia é reforçada pela austeridade no centro.

Em vez disso, no entanto, o que aconteceu foram três anos em que a política europeia se focalizou quase inteiramente nos supostos riscos da dívida pública. Eu não acho que seja perda de tempo discutir como surgiu esse foco deslocado, incluindo o papel infeliz desempenhado por alguns economistas que fizeram um trabalho apurado no passado e que farão presumivelmente um trabalho apurado no futuro. Mas o mais importante agora é mudar as políticas que estão a criar este pesadelo.

28 abril 2013

A solução dos 1%

Paul Krugman
The New York Times, 25 de Abril de 2013

Os debates económicos raramente terminam com uma derrota técnica. Mas o grande debate político dos últimos anos, entre keynesianos (que defendem a manutenção, e até aumento, dos níveis de despesa pública em contextos de recessão), e os austeritários (que pugnam por cortes imediatos na despesa), está - pelo menos no plano das ideias - a chegar ao fim. No ponto em que estamos, a perspectiva austeritária implodiu: não só todas as suas previsões falharam por completo quando confrontadas com a realidade, como a própria investigação académica, invocada para suportar essa doutrina, acabaria por se revelar repleta de erros e omissões e feita com estatísticas duvidosas.

Restam portanto duas questões. Primeiro, a de saber porque é que a doutrina da austeridade se tornou tão influente. Depois, a de saber até que ponto haverá mudança de políticas, agora que os argumentos centrais dos defensores da austeridade se transformaram em abundante matéria-prima para livros de banda desenhada.

Quanto à primeira questão, o claro domínio e capacidade de influência dos defensores da austeridade nos centros de decisão deveria perturbar todos aqueles que gostam de acreditar que a política se baseia, ou é pelo menos fortemente influenciada, por evidências da realidade. Afinal de contas, os dois principais estudos que alimentam os argumentos e justificações intelectuais para a austeridade - os trabalhos de Alberto Alesina e Sílvia Ardagna sobre a «austeridade expansionista», e de Carmen Reinhart e Kenneth Roggoff sobre o perigoso «limite» de 90% para a dívida pública - enfrentaram críticas fulminantes mal conheceram a luz do dia.

Estes estudos não sobrevivem, de facto, ao escrutínio. No final de 2010, utilizando dados mais precisos, o Fundo Monetário Internacional voltou a analisar o trabalho de Alesina-Ardagna e contrariou as conclusões a que estes tinham chegado; ao mesmo tempo que muitos economistas suscitavam objecções fundamentais em relação ao trabalho de Reinhart-Rogoff, muito antes de ser conhecido o famoso erro de excel. E tudo isto enquanto no mundo real a estagnação da Irlanda (que era o grande cartaz da propaganda infantil da austeridade), e a queda das taxas de juro nos Estados Unidos (país que se encontrava, supostamente, à beira de enfrentar uma crise fiscal eminente), esvaziavam de qualquer sentido as previsões austeritárias.

A doutrina da austeridade, contudo, não só tem mantido como até reforçado o seu poder e influência em relação às elites. Porquê?

Parte da resposta encontra-se certamente na vontade generalizada de encarar a economia como um jogo de moralidade, que a converte numa narrativa sobre os excessos e suas consequências. Andámos a viver acima das nossas possibilidades e agora estamos a pagar o preço inevitável. Os economistas bem podem explicar, até à exaustão, que isso não é verdade. Que a razão pela qual temos um desemprego de massas não se encontra em termos gasto excessivamente no passado, mas antes na circunstância de estarmos a gastar muito pouco agora, e que este é que é o problema que tem que ser resolvido. Não adianta. Muitas pessoas têm um sentimento visceral sobre o pecado e a necessidade de encontrar a redenção através do sofrimento. E nenhum argumento económico, como nenhuma constatação de que as pessoas que estão a sofrer agora não são as mesmas que pecaram durante os anos dos excessos, faz grande mossa.

Mas esta não é apenas uma questão de emoção versus lógica. Não é possível compreender a influência da doutrina da austeridade sem falar de classes e de desigualdades.

O que é que as pessoas querem, afinal, da política económica? A resposta, ao que parece, depende muito de a quem fazemos a pergunta - como mostra um trabalho recente dos cientistas políticos Benjamin Page, Larry Bartels and Jason Seawright. O artigo compara as preferências políticas do cidadão comum americano com as dos americanos com maiores níveis de rendimentos. E os resultados são assombrosos.

Assim, segundo o estudo, o cidadão comum americano manifesta alguma preocupação com os défices orçamentais, o que não surpreende dada a enxurrada de histórias assustadoras sobre o défice que circulam na comunicação social. Mas a maior parte dos mais ricos encara o défice como o maior problema que enfrentamos. E como é que o défice deve ser combatido? Os mais ricos respondem com cortes da despesa federal em Saúde e na Segurança Social - ou seja, nos «direitos» - enquanto os americanos em geral querem, pelo contrário, ver um aumento da despesa federal nesses domínios.

As coisas são claras: a agenda da austeridade parece ser a simples expressão das preferências das classes altas, que apenas se disfarçam num aparente rigor académico. Aquilo que os 1% mais ricos querem converte-se no que a ciência económica diz ser preciso fazer.

Mas será que uma depressão prolongada serve realmente os interesses dos mais ricos? É de duvidar, já que uma economia em expansão é geralmente boa para quase todos. E a verdade é que estes anos de austeridade têm sido muito difíceis para os trabalhadores, mas não têm sido assim tão maus para os mais ricos, que beneficiaram do aumento dos lucros e do valor das acções em Bolsa, à medida que o desemprego de longa-duração foi aumentando. Os 1% podem não querer realmente uma economia fraca, mas eles estão a conseguir resultados suficientemente bons para satisfazer os seus preconceitos.

É isto que nos faz pensar na diferença que pode verdadeiramente fazer o colapso intelectual da perspectiva austeritária. Na medida em que temos uma política dos 1%, feita pelos 1% para os 1%, não será de esperar que apenas tenhamos novas justificações para as mesmas velhas políticas?

Eu espero que não, pois quero acreditar que as ideias e as evidências da realidade contam, que têm pelo menos alguma importância. Se assim não for, que sentido posso dar à minha vida? Mas eu acho, contudo, que nós vamos ver até que ponto pode chegar o cinismo.

15 março 2013

A Lei das Rendas e suas Consequências

Comissão de Inquilinos das Avenidas Novas
(Documento de abertura da sessão-debate no Palácio Galveias, 7 de Março de 2013)

É uma perfeita evidência dizer que todas as mudanças legislativas que envolvem a sociedade devem ser longamente ponderadas, na medida em que envolvem pessoas e produzem frequentemente numerosos efeitos colaterais. Mas se essas pessoas forem predominantemente idosas e reformadas, maiores serão necessariamente os cuidados a tomar. E se a legislação incidir sobre aspectos de maior melindre, como a casa onde as pessoas habitam, mais difícil se torna ainda a tarefa.

Escudando-se no documento da troika que referia a adopção de «medidas tendentes a corrigir o NRAU, de 6/2006», o Governo elaborou a Lei 31/2012 que foi votada no Parlamento e promulgada pelo Presidente da República em Novembro passado. Ela vai muito além do que consta no referido memorando.

Assim, contratos legais, anteriores a 1990, livremente firmados entre particulares, foram, se não rasgados, desvirtuados com uma legislação que ultrapassa largamente o âmbito das medidas regulamentares, pondo em causa o constitucional direito à habitação e o imperativo determinado pela Constituição Portuguesa de uma política de rendas «compatível com o rendimento familiar» (artº 65- nº 1 e 2).

Mesmo uma leitura superficial da lei leva qualquer pessoa a concluir que se trata de legislação leoninamente favorável aos senhorios. Apontaremos apenas alguns casos mais flagrantes, dos quais o não menos importante é o facto de aos senhorios ser dada a possibilidade de aumentar as rendas sem fazerem quaisquer obras nos prédios que lhes pertencem. Se é verdade que muitos dos fogos ainda estão em condições razoáveis de habitabilidade, tal se deve, nomeadamente, a obras de manutenção que os velhos inquilinos neles fizeram. Como se sabe, outras habitações deixam muito a desejar. Uma lei que não garante a qualidade dos edifícios será sempre uma lei coxa.

Uma outra anomalia consiste na liberalização das rendas após cinco anos, para todos os inquilinos de rendas antigas, mesmo que não tenham suficientes posses, e uma quase-liberalização imediata das rendas para todos aqueles cujo agregado familiar aufira um montante mensal ilíquido superior a 2425 euros. Não só a nova avaliação dos edifícios faz subir o valor mensal patrimonial para um patamar bastante acima do actual, como também a percentagem que sobre esse valor incide para definição de um tecto de renda válido durante cinco anos foi aumentado de uns aceitáveis 4 por cento para uns exagerados 6,7 por cento. E, note-se, na avaliação os prédios não são vistoriados, pelo que um fogo degradado vale o mesmo que outro idêntico mantido em razoáveis condições. O facto de o inquilino não poder contestar a avaliação representa mais uma faceta do pendor leonino da lei a favor do senhorio.

Mas para além dos aspectos inerentes à lei, o momento da sua aplicação não podia ser mais inoportuno. Ao mesmo tempo que publica legislação que permite que as rendas aumentem de forma desmesurada para os inquilinos que ficam fora das cláusulas temporárias de salvaguarda (nas Avenidas Novas as rendas podem facilmente atingir os 1000 euros), o governo aplica a esses mesmos inquilinos uma carga fiscal que, ao reduzir de forma drástica o seu rendimento disponível, os pode colocar, inesperadamente e com grande desespero seu, numa situação de insolvência. Ficar sem uma habitação aos 70, aos 75, aos 80, ou aos 90 anos é um golpe tão grande que abreviará decerto a vida de muita gente.

Existe neste momento - e sentimo-lo bem nas manifestações de rua que têm abalado o país - uma inquietação geral em numerosas famílias. O sempre crescente desemprego reinante avoluma terrivelmente os problemas. Há um número considerável de idosos que já passaram a ter de partilhar a sua habitação (e também a sua reforma) com filhos e netos. A classe média vê-se a desaparecer, afogada em cortes e impostos, que diminuem drasticamente a sua qualidade de vida e não raramente põem em causa a sua própria sobrevivência.

O Governo poderia e deveria ter cumprido a promessa eleitoral de conferir um período de 15 anos para a fase de transição, deixando que a própria lei da vida resolvesse naturalmente o problema das rendas antigas. Preferiu despejar idsosos, mostrando também nesse domínio uma frieza arrepiante perante o sofrimento de pessoas que viveram décadas numa casa, numa zona, e que são obrigadas, numa fase da vida em que as suas capacidades de adaptação praticamente desapareceram, a deixar tudo para trás. E quantos não terão outra solução senão lares ou asilos, de qualidade duvidosa, verdadeiras antecâmaras da morte, pois os apoios de renda de que o governo fala não merecem credibilidade.

Estes são porventura demasiados problemas para um só debate, mas não temos dúvidas de que a qualidade dos oradores presentes representará um valioso contributo que forlalecerá a nossa determinação de continuar a lutar pelo direito a permanecermos nas casas onde vivemos há décadas. Desde já, um muito obrigado à senhora Vereadora da Cultura, Dra. Catarina Vaz Pinto, aos responsáveis pela Biblioteca Municipal do Palácio Galveias e, evidentemente, os nossos agradecimentos e uma salva de palmas aos três oradores nossos convidados, que tão amavelmente se prestaram a colaborar nesta causa, que, sendo nossa, é principalmente de muitos milhares de famílias portuguesas.

Muito obrigado!

13 dezembro 2012

albert otto hirschman

Rui Tavares
Público, 12 de Dezembro de 2012

Há muitos anos, num fim de tarde numa biblioteca, pedi um livro chamado As Paixões e os Interesses, de um economista que dava pelo nome de Albert O. Hirschman, por ter visto numa qualquer nota de rodapé a referência de que ali se encontrava algo relacionado com o meu próprio tema de estudo, ideias sobre política e cultura no século XVIII. Li as primeiras páginas e fiquei agarrado. Como era possível que um economista, que pouco trabalho documental tinha feito, conseguisse ter ideias tão claras - e tão boas - em temas nos quais eu tinha lido dezenas de historiadores de que pouco se conseguia guardar? A resposta estava na clareza e lucidez com que Hirschman conseguia pensar, escrever e relacionar as suas ideias. Depois de ler Hirschman, é difícil «des-pensar» as suas ideias.

Mais tarde, soube que o mesmo aconteceu com muita outra gente, estudando outras coisas, e lendo livros de Hirschman como A Retórica da Reacção, um magnífico estudo sobre política, ou Saída, Voz e Lealdade, essencial para entender a relação entre indivíduos e organizações.
Mas há poucos anos descobri mais sobre Albert O. Hirschman. E só então entendi que ele não foi apenas um grande intelectual, mas também um discreto herói da humanidade e um homem justo.

Albert nasceu em 1915, em Berlim, numa família judaica. Fugiu da Alemanha quando Hitler chegou ao poder, em 1933, e veio para Itália onde fez o seu doutoramento, em 1937. Mas ele não era só um homem de ideias, mas também de acção, e foi logo a seguir para Espanha, onde combateu na Guerra Civil contra o fascismo. Após a derrota, passou para França, onde viveu durante a II Guerra Mundial. Aí conheceu em Marselha um aventureiro, o jornalista americano Varian Fry, e com ele trabalhou no International Rescue Committee, que salvava refugiados do nazismo, principalmente judeus, enviando-os para Lisboa. Juntos salvaram alguns dos maiores artistas e intelectuais da época: Hannah Arendt, Max Ernst, André Breton, Alma Mahler, além da família de Thomas Mann, e muitos outros.

Entretanto, a irmã de Albert, que se chamava Ursula, tinha ficado na Itália, junto do seu marido, que fora preso por ser socialista, e que foi um dos autores do Manifesto por Uma Europa Unida e Livre, um dos primeiros manifestos defendendo uma democracia europeia.

Úrsula arriscou-se para trazer o manifesto da ilha-prisão onde se encontrava e distribuí-lo no continente.
Depois da guerra, Albert Hirschman esteve no primeiro congresso federalista europeu, antes de emigrar para os Estados Unidos da América, de onde ajudou o seu cunhado, o italiano Altiero Spinelli, a tentar constituir um movimento europeu dos cidadãos, e não dos funcionários ou dos governos.

Professor em Princeton, Albert O. Hirschman dedica-se a partir de então à economia do desenvolvimento; o seu papel é sobretudo sentido no apoio aos países da América Latina. E entretanto vai escrevendo os seus livros tão concisos, distintos e luminosos, que qualquer pessoa os pode facilmente ler e deles tirar proveito, apesar de as suas ideias serem quase sempre profundas.

Albert O. Hirschman morreu ontem, com 97 anos. Vou decretar cá para mim que o Nobel da União Europeia foi para ele (Coimbra, mais sábia, deu-lhe o honoris causa em 25 de Abril de 1993). Talvez, se lidas com atenção, as suas ideias nos salvem uma vez mais.

14 setembro 2012

por favor, deixem-nos respirar!

José Reis
Público, 12 Setembro de 2012

Chegamos, enfim, ao patamar inevitável: toda a gente volta a falar da economia. Mesmo os que fizeram carreira pública vistosa e sonante a declarar que se cortasse, cortasse, se embaratecesse o Estado, se depenasse o trabalho, se condenasse o consumo, se punisse o bem-estar, se erradicasse o investimento público, se castigasse a "vida acima das nossas possibilidades", se endeusassem as finanças públicas, nos submetêssemos a pobres credores afrontados pela nossa irresponsabilidade - mesmo estes começam a chegar ao essencial. Começam a ter conhecimento que uma economia ferida de morte é um quadro cruel e sem solução: não apenas para os perseguidos, os que vivem do trabalho e estão na esfera pública, mas para todos. Podemos, enfim, substituir os culpados. E encontrar os culpados reais: a troika, o Governo, as medidas insensatas, carentes do mínimo de sensatez. Os obcecados criaram o seu circo. E ele está a arder.

Eis os resultados: desemprego massivo, empobrecimento devastador, desconsideração dos serviços públicos, empresas desorientadas pelo sufoco, receita fiscal a cair a pique. Perturbador é o que os insensatos continuam a fazer: impostos injustos que minam gravemente a progressividade de qualquer sistema fiscal digno (é isso o que a nova taxa única sobre o trabalho significa); transferência directa de dinheiro dos bolsos do trabalho para as empresas, com consequências obviamente inúteis na criação de emprego; desafio ostensivo ao Tribunal Constitucional; aprofundamento do estado comatoso do sistema económico; afronta às bases mínimas da coesão social. Já terão entendido, com este desenho, o que é a economia?

07 agosto 2012

empresas pagaram em 2010 só 6% de IRC sobre os resultados contabilísticos

João Ramos de Almeida
Público, 6 de Agosto de 2012

Ao longo de duas décadas, o imposto sobre os resultados das empresas tem vindo a pesar cada vez menos na sua actividade. Em 1990, o IRC liquidado pelo Estado representava 27% dos resultados contabilísticos positivos declarados pelas empresas. Passados 20 anos, o IRC pesou já só 6% desses resultados.

Estes valores extraem-se das estatísticas do IRC divulgadas pela administração fiscal. Os valores mais recentes referem-se ao exercício de 2010, mas os seus valores prolongam uma trajectória descendente verificada desde a década de 1990 (ver gráfico). De 1990 a 2010, o montante dos resultados contabilísticos positivos multiplicou-se por 13, enquanto a receita de IRC apenas triplicou.

Em boa medida, essa redução pronunciada do peso da tributação deve-se a diversos motivos, como a permanente evasão fiscal à tributação das empresas ou a progressiva redução das taxas de IRC. Mas também é fruto da política fiscal destas duas décadas, de que são exemplo os benefícios e prejuízos fiscais e diversas medidas legais.

Os fiscalistas ouvidos pelo Público têm dificuldade em abordar um período tão longo que atravessa fases como a adesão à CEE, criação da moeda única, várias crises e uma avalanche de medidas legais adoptadas. Mas partilham a ideia de que, cada vez mais, os resultados contabilísticos se afastam dos rendimentos tributáveis, o que tem impacto negativo na receita fiscal do IRC.

Como foi então possível uma erosão tão forte da matéria colectável do IRC? Primeiro, houve uma redução para mais de metade do peso do lucro tributável nos resultados contabilísticos positivos. Ou seja, beneficiando das regras legais, metade dos resultados contabilísticos deixou de ser tributada. Como se não bastasse, a passagem dos lucros tributáveis para a matéria colectável - via prejuízos fiscais e benefícios fiscais - significou uma perda de dois terços dos lucros tributáveis. Em terceiro lugar, a matéria colectável apurada foi afectada pela progressiva redução das taxas. Ou seja, a própria colecta tem vindo a reduzir-se ao longo dos 20 anos - desceu cerca de 25%. Finalmente, surgem as deduções à colecta de IRC. Na última década, essas deduções representaram 10% da colecta.

Tudo isso fez com que, quando se compara o peso do IRC liquidado face aos resultados contabilísticos positivos, se verifique a queda abrupta da receita de IRC - de 27% para 6% dos resultados contabilísticos.

Quem mais beneficiou?

Da compilação das estatísticas, depreende-se que nem sempre foram as mesmas empresas que mais beneficiaram com essa tendência.

Apesar de, nestes 20 anos, a receita de IRC continuar fortemente concentrada nas grandes empresas (indiciando uma forte evasão das pequenas e médias), na década de 1990 parecia haver uma certa "harmonização" na taxa efectiva de tributação. A generalidade das empresas "pagava" entre 25% e 35% de IRC sobre os resultados contabilísticos.

Mas nos últimos anos têm sido as grandes empresas a conseguir quebras pronunciadas da sua tributação, muito superiores às das pequenas e médias empresas.

No início do século XXI, as empresas com um volume de facturação anual até cinco milhões de euros contribuíam com um IRC que representava entre 21% e 23% de resultados contabilísticos. Mas as maiores empresas - com facturações acima de 250 milhões de euros - "pagavam" 9,3% dos resultados contabilísticos.

De 2008 a 2010, coincidindo cor a crise internacional, esse contributo mais reduzido pareceu "harmonizar-se". As empresas até cinco milhões de euros de facturação anual conseguiram reduzir o peso do IRC para valores até 10% dos resultados contabilísticos. E as empresas com facturações entre cinco e 250 milhões suportaram as maiores taxas, ainda que bastante abaixo das verificadas na década de 1990 - entre 10% e 15%.

Por sectores, a tendência foi generalizada. Mas em 2010, foi a banca que conseguiu a maior redução da taxa efectiva.

Menos empresas pagam IRC

Mas a situação pode ser ainda mais desigual. Em 1990, das 131 mil empresas que entregaram declarações fiscais, cerca de 85,5 mil tiveram resultados contabilísticos positivos (65%). Foram 3,8 mil milhões de euros. Nessa altura, o lucro tributável face ao contabilístico até subiu para 4,4 mil milhões de euros. Mas a dedução dos prejuízos fiscais e os benefícios fiscais fizeram baixar a matéria colectável para 2,9 mil milhões de euros. Já o IRC de 1990 totalizou cerca de mil milhões de euros e foi pago por 72,6 mil empresas.

Passados 20 anos, cresceu o número de empresas, mas os resultados são piores. Das 393 mil empresas com declarações fiscais, apenas metade declarou resultados positivos (contra 65% em 1990). Os seus resultados positivos de 49,8 mil milhões de euros reduziram-se a 25 mil milhões de lucros tributáveis – ou seja, uma quebra de metade devido a alterações patrimoniais. Esse lucro tributável foi ainda reduzido de 25 para 15,1 mil milhões de matéria colectável, pela dedução de prejuízos fiscais e de benefícios fiscais. O volume de prejuízos fiscais tem vindo a crescer: de 2005 a 2010, foram quase 60 mil milhões de euros. Só em 2010 registaram-se 12 mil milhões.
À matéria colectável de 15,5 mil milhões e após a aplicação das taxas de IRC, a colecta de 3,3 mil milhões de euros foi ainda atenuada por deduções várias, ficando em cerca de três mil milhões, em 114,8 mil empresas. Só os benefícios fiscais foram 233 milhões de euros.

Resumindo: em 1990 cerca de 55% das empresas pagaram uma quantia de IRC que representou 27% dos resultados. Em 2010 só cerca de 29% das empresas pagaram um IRC de 6% dos resultados contabilísticos.

28 julho 2012

encostados a um canto

José Pacheco Pereira
Público, 28 de Julho de 2012

Antes do "ajustamento", as pessoas "ajustavam-se" para ir para o Algarve e a grande transumância entupia as estradas de Norte para o Sul. Várias vezes escrevi sobre isso e habitualmente, no princípio de Agosto, previa-se o "estado do país" em Setembro, no regresso, e em Outubro com as primeiras chuvas. Já há vários anos que, no regresso ao trabalho, para quem tinha férias – sempre o sublinhei, uma minoria –, a coisa estava mais negra do que antes.

O declive do país não é de agora e já de há muitos anos a esta parte se percebia que nada estava a melhorar e várias coisas estavam a piorar. Mas a dimensão ainda era apenas a de um lento declínio, um escorregar manso para os fundos da casa nacional. Agora é mesmo uma queda acentuada, já não para os fundos da casa, mas para o inferno sobre o qual ela assentava e que se abriu aos nossos pés. Daí saiu o Diabo e comeu-nos o futuro.

Não há futuro, chega dizer isto. Não há futuro e as pessoas sabem-no. Não há futuro para uma grande maioria, mas a queda não é para todos, as pessoas também o sabem demasiado bem. Antes, lá íamos cantando e rindo, empurrados pela silly season. Agora lá vamos chorando e com ranger de dentes. Faz toda a diferença. Eu sei, os meus severos leitores sabem-no, os portugueses também, o Governo sabe e até o habitante da Vila do Corvo o sabe. Não há futuro. Faz toda a diferença.

Em Setembro, todos os actores do poder, da oposição e das diferentes forças políticas, económicas e sociais estarão encostados à parede num quarto cada vez mais pequeno. Encostados a um canto. Uns sabem, outros não. Uns vão saber a mal, outros vão tentar abrir um buraco na parede. Na verdade, já lá estão todos no canto, mas o mês dos banhos, da transumância e do cancro na pele, este ano acumulará mais tensões do que descansará. Este ano não haverá sequer silly season que pegue, por muito inquérito imbecil que os jornais façam. Vai haver quem faça tudo para a estação ser silly, e há gente com muita capacidade para a patetice e que a exerce como quem respira, mas os ânimos não estão para as brincadeiras de praia. Ah, e não se esqueçam que o vendedor de “línguas-da-sogra” tem que passar factura e podem ser multados se não a pedirem.

Já escrevi e repito que nesse canto da casa onde estamos, a raiva vai ser a resposta mais comum. A raiva é um sentimento complicado, que nem sempre transparece na violência pública, seja contra os familiares, os colegas, os polícias, a montra de um banco, ou um carro preto do Governo. George Santayana escreveu que "a depressão era uma raiva espalhada fina" e, numa das melhores descrições da raiva "espalhada grossa", Melville falava do capitão Ahab que descarregava sobre a baleia branca "a raiva e ódio sentido por toda a raça humana de Adão até aos nossos dias". E como se não chegasse tão monumental violência ainda diz que se "o peito [de Ahab] fosse um morteiro, faria explodir a granada do seu coração em brasa sobre ela", a baleia. Já temos baleia, temos o morteiro e temos o capitão Ahab.

Não há segredo nenhum sobre a pretensa passividade e "aquiescência" dos "pacientes" e "pacíficos" portugueses face ao "ajustamento". E não há segredo nenhum porque não há qualquer dessas atitudes, nem paciência, nem passividade, e muito menos aquiescência. O modelo que vê a "impaciência" pelas batalhas campais nas ruas gregas, quando uma minoria de anarquistas, esquerdistas e outros partidários do cocktail Molotov se atira à polícia, esquece que o bloqueio político que resulta do voto e da abstenção dos gregos é muito mais importante para a "crise" do que os confrontos de rua. E muito mais democrático, porque aí pode-se falar em nome dos gregos com propriedade, mesmo dos que votaram na Nova Democracia.

É na pedrada na rua que se vê a raiva? Não, não é. Não olhem para a raiva de baixo, olham para a raiva de cima. É que não são só os de baixo que percebem que estão a ficar encostados a um canto, são também os de cima. Os de cima já perceberam que os melhores tempos já estão no passado, que o Governo já está mais estragado e hesitante do que o que eles desejavam, que já não está intacto e forte, mas que uma mistura de Relvas, mais o défice incontrolado, mais, espantem-se, a proximidade das eleições, está a dar second thoughts àqueles que queriam apenas como “bons alunos” e executores. O magma da “política”, que os de cima tanto desprezam, começa a vir à superfície e será o “ruído” que não desejam. Ou, como diz o FMI de forma certeira, há "fadiga do ajustamento". E os de cima pensam que ainda está muita coisa para fazer, para agora já lhes começarem a dizer que se chegou ao limite. Começam a ter a sensação de que foi uma oportunidade única, ainda é uma oportunidade única, mas que está a acabar, começa a faltar o espaço. O canto começa a ficar apertado. Daí a raiva crescente.

É quando Pedro Ferraz da Costa diz, com aquele ar perpetuamente zangado e enjoado com o mundo, que é preciso acabar com 100.000 ou 200.000 empregos na função pública, sem problema nenhum, porque o Estado vai continuar a funcionar na mesma. É que não é análise, é desejo. É quando se defende um mundo que funcione para as "empresas" – uma abstracção funcional porque o que eles querem dizer é outra coisa – sem ter que emperrar porque há leis, direitos e direitos, instituições e eleições, interesses outros que não os das «classes certas». Quando esse discurso, bruto e sem ambiguidades, veio ao de cima com a decisão do Tribunal Constitucional, percebemos bem a raiva.

No meio disto tudo, Passos Coelho fornece outro produto, mais à sua dimensão de executante, mas que também transporta alguma desta raiva. É quando Passos Coelho diz que "não estamos a exigir de mais", como se fosse pouco o que se está a exigir e ainda não levaram em cima com a dose toda. É quando avança com mais uma comparação moral que mostra o imaginário em que estamos metidos; não podemos correr o risco de nos cruzar com os nossos credores "nos bons restaurantes e boas lojas". É mesmo isso que os portugueses andaram a fazer nos últimos anos, a comprar malas Vuitton e sapatos Jimmy Choo!

Passos dizia que as pessoas "simples" percebiam isto, porque de facto para ele as coisas são assim simples. Então como é que nos devemos "cruzar com os nossos credores"? De alpergatas, vestidos de chita, trabalhando dez horas por um salário de miséria? É que não é preciso andar muito tempo para trás para ter sido assim. Ainda há quem se lembre. Deve ser por isso que é preciso "ajustar".

O papel destas ideias, elas sim "simples" no sentido bíblico, é que são aquilo que está metido dentro da cabeça do discurso do poder actual, mais por parte dos executantes do que dos mandantes. O teatro do poder actual é composto por poucas personagens a preto e branco: os credores, os devedores, os empreendedores, os "não competitivos", os que "vivem acima das suas posses" e os "ajustados", "os alavancados" e os "desalavancados", os "piegas" preguiçosos e os bons alunos que fazem o "trabalho de casa" e não querem ter direitos, os "pacientes" e as "baratas tontas". Não é um mundo muito complicado, é até assustadoramente simples, mas assusta saber que é este teatro de sombras que move o discurso do primeiro-ministro. Nele não há pessoas e quando as há estão do lado do mal, são "ruído", são não-económicas na sua essência».

Para alguns, falar dos de cima e dos de baixo, é marxismo. Coitados, sabem bem pouco o que é o marxismo, para sequer perceberem que Marx escreveu toda a sua obra para explicar que não era "científico" falar assim dos conflitos sociais. Não, não é marxismo, nem pcpismo, nem bloquismo, é apenas repetir a mais velha percepção de que os conflitos sociais de sempre se fazem entre quem ganha e quem perde, quem é mandado e quem manda, entre quem tem e quem não tem. Vem em Aristóteles e vem em Aristófanes, a sério e a gozar.

Em alturas de mudança social profunda, neste caso associada à destruição da classe média e ao empobrecimento generalizado, quem não percebe isto, não percebe nada. Em Setembro, acordará do seu sono percebendo o canto a que está encostado. Ou em Agosto, ou em Outubro. Porque estas coisas, uma vez maduras, não escolhem nem dia nem hora.

03 julho 2012

a caminho de um falhanço colossal

Nicolau Santos
Expresso, 30 de Junho

Não poupemos nas palavras. Um ano após ter tomado posse e definido uma estratégia que foi claramente mais longe do que aquilo que estava acordado com a troika, o Governo está à beira de um falhanço colossal em matéria do Orçamento de Estado.

Não é caso para todos os que disseram e escreveram que esta estratégia só podia acabar nisto se ufanarem. Estando à beira do abismo, o primeiro-ministro já admitiu que não hesitará em dar o passo em frente, só para provar aos mercados e aos nossos parceiros externos a sua fortíssima determinação em ultrapassar o acordo com a troika, mesmo que isso signifique lançar mais medidas de austeridade, que cairão em cima do já muito fustigado lombo da generalidade dos portugueses, na alegórica linguagem do primeiro-ministro.

Se fosse outro Executivo, cairia o Carmo e a Trindade com acusações de incompetência e incapacidade para travar o despesismo do Estado. Ora perante um Governo que calculou que o IVA ia crescer 11,6% e está confrontado com uma descida de 2,8% até maio; com uma quebra nos impostos sobre veículos que estava prevista ser de 6,5% e já vai em 47% (!); com um recuo esperado de 2,1% no imposto sobre produtos petrolíferos, que ascende já a 8,4%; com um aumento no subsídio de desemprego de 23%, quando o Executivo apontava para 3,8%; e com uma quebra nas contribuições para a segurança social de 3%, quando se esperava apenas 1% - o que se pode dizer se não que se trata de um falhanço verdadeiramente colossal da equipa das Finanças e, em particular, do brilhantíssimo e competentíssimo ministro Vítor Gaspar?

Não, não douremos a pílula. Este descalabro não resulta de alterações dramáticas da conjuntura internacional, que tenham desvirtuado drasticamente as bases em que assenta o Orçamento de Estado de 2012. Este descalabro resulta do profundo desconhecimento de como funciona a economia portuguesa, reduzida a uma folha de Excell onde qualquer medida X terá sempre o resultado Y; resulta da desvalorização ostensiva dos sucessivos sinais do estrangulamento financeiro das pequenas e médias empresas nacionais, devido à brutal travagem no crédito bancário; resulta da convicção profunda de que depois de falirem milhares de empresas, de explodir o desemprego e da economia atravessar uma profunda recessão, se reerguerá das cinzas com grande facilidade como uma fénix renascida; e resulta ainda do autismo germânico do primeiro-ministro e do ministro das Finanças, que nunca puseram em causa se seria possível fazer o ajustamento previsto no acordo com a troika, no tempo, com o financiamento e as condições que nos foram exigidas.

Diz-nos agora o ministro das Finanças que na análise da sua equipa, e economia portuguesa ainda não está em fase de exaustão fiscal. Se a esta afirmação juntarmos a do primeiro-ministro, que admite novas medidas de austeridade se necessárias, então só podemos recear que mais impostos venham a ser lançados sobre o rendimento das famílias e empresas - a não ser que a troika nos dê mais tempo para cumprir o défice de 3% ou que aceite que receitas extraordinárias contem para o défice este ano. Em qualquer caso, quando é mais do que evidente como o garrote fiscal está a estrangular a economia e que mais impostos vão provocar ainda mais recessão e menos receita, é extraordinário que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças insistam neste caminho. Já não é fé na receita, mas apenas a mais absoluta irracionalidade.

11 junho 2012

a crise da democracia europeia

Amartya Sen
New York Times, 23 de Maio de 2012


Se fosse necessária uma prova de que o caminho para o inferno se faz de boas intenções, a crise económica na Europa estaria aí para o demonstrar. As esforçadas, mas estreitas, intenções dos decisores europeus têm-se revelado desajustadas para uma consolidação da economia e produziram, em vez disso, um mundo de miséria, caos e confusão.

Há duas razões para que assim seja.

Primeiro, porque as intenções podem ser respeitáveis, sem que isso signifique que sejam lúcidas. E porque os fundamentos da actual política de austeridade, combinados com a rigidez da união monetária da Europa (dada a ausência de uma união fiscal), raramente têm sido um modelo de coerência e sagacidade. Em segundo lugar, porque uma intenção, mesmo que boa em si mesma, pode entrar em conflito com uma prioridade mais urgente - neste caso, a preservação de uma Europa democrática, que se preocupa com o bem-estar social. E estes são os valores pelos quais a Europa tem lutado, ao longo de muitas décadas.

Era certamente necessário que alguns países europeus tivessem assumido, desde há muito, uma maior responsabilidade económica e uma melhor gestão da economia. O tempo, contudo, é crucial; uma reforma assente num calendário bem pensado distingue-se de uma reforma feita à pressa. A Grécia, apesar de todos os seus problemas de prestação de contas, não estava em crise económica antes da recessão global de 2008 (de facto, a economia grega cresceu 4,6% em 2006 e 3% em 2007, isto é, antes de começar a contrair-se de forma continuada).

A causa da reforma, independentemente da sua urgência, não fica bem servida pela imposição unilateral de cortes súbitos e selvagens nos serviços públicos. Porque estes cortes violentos e indiscriminados são uma estratégia contraproducente, dado o gigantesco desemprego e a falência e subaproveitamento das capacidades produtivas das empresas que a quebra da procura provoca. Na Grécia, um dos países que está a ser deixado para trás pelo aumento de produtividade verificado noutros lugares, o estímulo económico através da política monetária (desvalorização cambial), tornou-se impossível pela existência da união monetária europeia, ao mesmo tempo que o pacote fiscal exigido pelos líderes do continente europeu contraria de forma severa o crescimento. Os resultados económicos da zona euro continuaram a diminuir no quarto trimestre do ano passado e as previsões, na altura, foram tão terríveis que a estimativa de crescimento zero no primeiro trimestre deste ano, inscrita num relatório recente, foi amplamente saudada como sendo uma boa notícia.

Há, de facto, plena evidência histórica que o caminho mais efecaz para cortar nos défices é aquele que combina a redução do défice com rápido crescimento económico, capaz de gerar mais receitas. Os enormes défices do pós-guerra desapareceram em grande medida graças a um rápido crescimento económico e algo semelhante ocorreu durante a presidência de Bill Clinton. A tão aclamada redução do défice da Suécia, entre 1994 e 1998, ocorreu de facto com um crescimento relativamente elevado. Em contraste, hoje exige-se aos países europeus que cortem os seus défices enquanto se mantém aprisionados a um crescimento nulo ou negativo.

Há aqui seguramente lições a tirar de John Maynard Keynes, que compreendeu que o Estado e o mercado são interdependentes. Mas Keynes tinha pouco a dizer sobre justiça social, incluíndo os compromissos políticos com que a Europa emergiu depois da Segunda Grande Guerra. Foi isso que conduziu ao nascimento do moderno Estado Providência e dos sistemas nacionais de saúde - não para sustentar uma economia de mercado mas sim para proteger o bem-estar humano.

Embora Keynes não se tivesse envolvido profundamente com estas questões sociais há, na Economia, uma velha tradição, a que combina mercados eficientes com provisão pública de serviços que o mercado não é capaz de assegurar. Como Adam Smith (tantas vezes simplisticamente encarado como o primeiro guru da livre economia de mercado) escreveu, na «Riqueza das Nações», há «dois objectos distintos» numa economia: «primeiro, garantir recursos abundantes ou de subsistência para as pessoas, isto é, mais precisamente, que lhes permitam assegurar um rendimento ou uma forma de subsistência para elas próprias; e, em segundo lugar, dotar o Estado ou a comunidade com uma receita suficiente para serviços públicos.»

Talvez o aspecto mais perturbador da actual doença europeia seja a substituição do compromisso democrático pela ditadura financeira - imposta pelos líderes da União Europeia e do Banco Central Europeu e, indirectamente, pelas agências de rating do crédito, cujas decisões se têm revelado manifestamente infundadas.

Um debate público participado - o «governo através da discussão» como propõem teóricos democratas como John Stuart Mill e Walter Bagehot - podia ter identificado reformas apropriadas para um período de tempo razoável, sem ameaçar os fundamentos do sistema europeu de justiça social. Pelo contrário, os cortes drásticos nos serviços públicos, efectuados com uma discussão mesmo muito escassa quanto à sua necessidade, eficácia ou equilíbrio, conduziram à revolta de amplos segmentos da população europeia e caíram nas mãos de extremistas de ambos os limites do espectro político.

A Europa não poderá renascer se não encarar dois domínios da legitimidade política. Em primeiro lugar, a Europa não pode entregar-se às visões unilaterais - ou boas intenções - de peritos sem capacidade de pensar nos termos de uma racionalidade pública e sem o consentimento informado dos seus cidadãos. Perante o claro desdém pela opinião pública, não surpreende que, eleição após eleição, as pessoas mostrem a sua insatisfação ao votar em soluções não convencionais.

Em segundo lugar, tanto a democracia como a oportunidade de gerar boas soluções saem prejudicadas quando políticas ineficazes e flagrantemente injustas são impostas pelos líderes. O fracasso óbvio dos mandatos austeritários, impostos até agora, minou não apenas a participação pública - um valor em si mesmo - mas também a possibilidade de chegar a uma sensata, e razoavelmente calendarizada, solução.

Este é certamente um grito muito distante, vindo da «união democrática europeia», que os pioneiros da União Europeia procuraram seguir.

(Amartya Sen, laureado com o Prémio Nobel e professor de Economia e Filosofia em Harvard, é o autor do recente livro «A Ideia de Justiça»).

20 abril 2012

governo quer mexer na forma de cálculo do RSI e alterar os ponderadores de cada família

João Ramos de Almeida
Público, 19 de Abril de 2012

A manter-se o valor de referência do actual RSI, as novas regras poderão expulsar milhares de beneficiários do apoio

O Governo quer alterar a fórmula de cálculo do rendimento social de inserção (RSI). Caso se mantenha o valor do actual rendimento de referência, a quebra nos apoios e do número de beneficiários será considerável.

Na proposta de lei já entregue aos parceiros sociais, o Governo não é claro sobre o que pretende fazer. O próprio ministro Pedro Mota Soares omitiu a modificação, na conferência de imprensa de anúncio, após o Conselho de Ministros. Nem explicou como poupará 70 milhões de euros. O PÚBLICO questionou o Ministério da Solidariedade, mas no mail enviado não se respondeu a qualquer das perguntas colocadas. Mas a questão é sensível.

Em Fevereiro passado, o RSI apoiou 121.443 famílias, num total de 322,9 mil pessoas, com um valor mensal por pessoa de 92 euros.

Actualmente, o valor da prestação está indexado à pensão social (189,52 euros) e depende da composição do agregado. Ora, o Governo quer mexer tanto no rendimento de referência como na fórmula. Primeiro, o rendimento de referência do RSI será igual a uma percentagem do indexante de apoios sociais (IAS, de 419,22 euros), a fixar por portaria do ministro da Solidariedade. O IAS está congelado durante o programa de apoio financeiro externo e, por isso, o valor do RSI só crescerá se o Governo aumentar a percentagem do IAS aplicável ao RSI.

Depois, o Governo optou pela tabela de escalas de equivalências da OCDE. O valor do RSI será igual a 100% do rendimento de referência para o adulto requerente (como agora), mas por cada adulto adicional na família receber-se-á mais 50% do rendimento de referência (em vez de 70% da pensão social) e, por cada menor, mais 30% do rendimento de referência (em vez de 50% da pensão social).

Qual o efeito da alteração? Tudo depende da percentagem do IAS que o governo vier a fixar. Se o governo optar por uma percentagem do IAS que corresponda à actual pensão social (45%), então as consequências serão gravosas.

Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão, estima em milhares a quebra dos beneficiários. No caso de um casal com duas crianças, o limite de aceitabilidade no RSI desce de 512 para 398 euros (uma quebra de 22%). Ou seja, deixam de ser apoiadas todas as famílias que tenham rendimentos naquele intervalo. No caso de uma família monoparental com uma criança, os limiares descem de 379 para 303 euros (uma quebra de 20%). Só não sofrem alteração as pessoas isoladas. Esta alteração penaliza sobretudo as famílias com crianças a cargo.

E não só haverá uma redução do número de beneficiários como também no valor dos apoios. Isso porque o valor do RSI resulta da diferença entre o rendimento da família e o rendimento de referência. Mas tudo fica a depender da percentagem do IAS que o Governo fixar.

As eventuais quebras no RSI são mais significativas, já que representam uma segunda quebra, desde que o Governo socialista introduziu, em 2010, a condição de recursos - em que os beneficiários prestaram contas dos seus bens. Só o casal com dois filhos sofreu, em 2010, uma quebra de 569 para 512 euros.

O PÚBLICO quis saber do ministério se os valores eram os correctos, qual seria a percentagem do IAS a aplicar, como se poupará os 70 milhões, de que forma as quebras esperadas irão ao encontro do compromisso do Governo junto da UE de reduzir em 200 mil pessoas o número de pobres (Estratégia 2020), dado que, como se concluiu, o RSI contribui fortemente para a redução das desigualdades sociais. Em vão.