as escolas privadas e a demagogia do cheque-ensino
Nuno Serra
Público, 16 de Janeiro de 2011
Público, 16 de Janeiro de 2011
A divulgação dos resultados dos exames nacionais (ranking de escolas) e a publicação do rela-tório da OCDE relativo às competências dos alunos (PISA), bem como a questão da renovação dos contratos de associação entre o Ministério da Educação e as escolas particulares, recolocaram no espaço de debate mediático a discussão sobre o papel do ensino privado em Portugal.
Nos últimos tempos, de facto, têm-se multiplicado os artigos de opinião favoráveis quer à integração das escolas privadas no sistema público, como à adopção do cheque-ensino, que se traduz na entrega anual de um envelope financeiro às famílias e aos estudantes, para que estes possam passar a escolher o estabelecimento de ensino que desejam frequentar.
Estas propostas, que assumem um recorte ideológico claro, raramente reconhecido pelos seus próprios autores, partem de uma convicção que merece ser discutida: a ideia de que o ensino privado é, por natureza, superior ao ensino público, possibilitando a obtenção de melhores resultados escolares.
Contudo, se convertermos as escalas de classificação dos exames nacionais do ensino básico (de 0 a 5) e do ensino secundário (de 0 a 20) em valores percentuais ponderados, constatamos que a diferença entre o valor médio obtido pelas escolas privadas face às escolas públicas é menor do que se poderia esperar face à tão propalada diferença. De facto, a partir dos resultados de 2010, as escolas privadas atingem uma classificação média de 69,5%, sendo de 53,7% o valor médio obtido pelas escolas do sistema público. A circunstância de a larga maioria dos alunos que frequentam as escolas privadas ser proveniente das classes alta e média-alta, com um background familiar e de conhecimentos muito superior ao da generalidade dos alunos das escolas públicas, obriga pois a relativizar a diferença encontrada.
Por outro lado, e ao contrário do que pressupõem os defensores dos rankings das escolas, que os encaram como uma tradução directa da avaliação do seu desempenho, se agregarmos territorialmente os valores obtidos pelos diferentes estabelecimentos de ensino verificamos que os melhores resultados têm uma leitura espacial clara. Nas áreas da faixa litoral Norte, (entre Minho Lima e Grande Lisboa), os valores obtidos nunca são inferiores a 54%, apresentando no conjunto uma média de 57% (que se situa, nas restantes áreas do país, em torno dos 53%). O que significa, portanto, que os rankings nos dão sobretudo um retrato social e económico de Portugal, dos seus diferentes níveis de desenvolvimento, e não um retrato linear e directo do desempenho das escolas. Concelhos com maiores níveis de urbanização, poder de compra e taxas de escolarização mais elevadas (entre outras variáveis que traduzem as diferenças de desenvolvimento social) permitem a obtenção de melhores posições das suas escolas nos rankings de resultados.
Assim, quando analisamos a distribuição territorial dos estabelecimentos de ensino, verificamos que a larga maioria das escolas privadas (78%) se situa justamente nesta faixa litoral, com maiores índices de desenvolvimento, beneficiando portanto – para além da selecção social anteriormente referida – da sua localização em territórios com “melhores alunos”. No caso do ensino público, a distribuição das escolas entre o litoral Norte e o resto do país é comparativamente mais equilibrada (com 52 e 48%, respectivamente), re-flectindo o princípio de cobertura territorial inerente ao sistema público de educação.
Isto não significa, porém, que não existam diferenças entre as escolas privadas e as escolas públicas. Uma parte da explicação para os distintos resultados escolares médios obtidos dever-se-á também ao facto de os estabelecimentos de ensino privado serem em regra de menor dimensão, muitos deles com turmas constituídas com um menor número de alunos e a um funcionamento orgânico mais definido e consolidado. Nada disto, todavia, é intrínseco a uma suposto “código genético” das escolas privadas, antes sugerindo ao sistema público alguns caminhos de mudança que é urgente percorrer, e que se revelam incompatíveis com o desinvestimento a que este tem sido sujeito nos últimos anos (nomeadamente com a redução do pessoal auxiliar e docente e com uma agregação cega das escolas em “mega-estabelecimentos” de ensino).
Carece pois de fundamento a tese da supremacia do ensino particular sobre o ensino público, bem como a necessidade de transfigurar a rede pública de educação em benefício dos privados, incorporando-os no sistema. Tal como importa assinalar a forma leviana, demagógica e superficial com que tem sido discutida, entre nós, a proposta do cheque ensino. De facto, se todos os alunos de uma localidade, munidos do respectivo vale entregue pelo Estado, pretendessem frequentar a melhor escola que têm ao seu dispor, como ficaria a tão aclamada “liberdade de escolha”? Quem acabaria por escolher quem?
Não custa imaginar que, perante um aumento da procura superior à capacidade de oferta, as melhores escolas privadas (que pretendem legitimamente manter a sua reputação nos rankings), escolheriam os melhores alunos. Ao mesmo tempo que, com a transferência de fundos para o ensino privado, a pauperização e degradação das condições de financiamento e funcionamento das escolas da rede pública se veriam ainda mais agravadas, generalizando um sistema dual, que hoje – apesar de todas as desigualdades económicas conhecidas – o sistema público tem, em certa medida, impedido.
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