cortina
Paulo Varela Gomes
Público, 8 de Maio de 2010
Público, 8 de Maio de 2010
Estou a ver à minha frente (mas o leitor não, peço desculpa) uma fotografia da pequena praceta de San Lorenzo em Nápoles. É uma imagem a preto e branco, provavelmente da década de 1950. Há pessoas que passam, miúdos que brincam no chão, tabernas abertas para a rua, uma senhora debruçada à varanda do primeiro andar de um prédio que tem roupa pendurada nas janelas. No meio da praceta, uma barraquinha onde se vendem flores abriga do sol a silhueta discreta de uma jovem mulher.
Escrevendo acerca de Nápoles, Walter Benjamim, que era alemão e portanto do Norte, disse que nas cidades do Sul "toda a atitude e todo o acto privado são submergidos pela onda do comunitário", precisando que nestas cidades "a casa abre-se para a rua com cadeiras, fogareiro e altar" e é "muito menos o abrigo em que se entra do que o inesgotável reservatório de onde se sai". Porém, acrescenta ele, também o inverso é verdade: "a rua invade a casa" enchendo-a de "velas, santos, molhos de fotografias". Em contrapartida, escreve Benjamin, nas cidades do Norte "existir é tudo o que há de mais privado".
No anúncio de uma empresa de telecomunicações que passa cansativamente nas televisões portuguesas, há pessoas muito contentes por terem em casa, a funcionar ao mesmo tempo, todos os seus neo-electrodomésticos (expressão - óptima - inventada por uma amiga minha). É um não acabar de ecrãs: televisão, computador, coisinhas pequeninas. De facto, não se consegue entrar na casa de qualquer pessoa pobre ou pobre de espírito, sem haver pelo menos uma televisão ligada. O mundo parece ter-se transformado numa enorme Nápoles à maneira da descrição de Benjamin: a rua entra nas casas livremente (embora mediatizada pelos electrodomésticos inventados para isso).
Em algumas das cidades do Norte de que falava Benjamin - por exemplo, Haia - as casas das famílias protestantes têm vidraças sem cortinas que deixam ver todos os cantos das salas. Destinam-se a provar que quem habita aquela casa não tem nada a esconder e vive sem pecado. Estas casas são muito parecidas com os bordéis de Amesterdão, também na Holanda, onde há vidraças igualmente transparentes. Nos bordéis, para se apregoar que ali se vive em pleno pecado é necessário fazer como os burgueses de Haia: mostrar tudo.
Estas janelas e montras, bem como a utilização moderna dos meios de comunicação, parecem corresponder à entrada da rua pela casa dentro nas cidades do Sul de que falava Benjamin: os ecrãs são vidraças nas quais vemos tudo o que se passa na rua, incluindo as coisas mais proibidas. Todavia, esta visibilidade não significa sempre vizinhança ou sentimento colectivo, porque não se verifica a outra característica que Benjamim imaginava: a casa não sai à rua. De facto, a segurança impõe em toda a parte portas fechadas.
A cortina que, nas aldeias, ainda volta discretamente ao seu lugar depois de nós passarmos, estabelece uma relação mais "napolitana" com a rua que qualquer ecrã ligado 24 horas por dia. Faz da rua e da casa os dois lados de uma mesma vida.
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