27 fevereiro 2010

as famílias verdadeiras

Alexandra Lucas Coelho
Público, 26 de Fevereiro de 2010

Há algo de fascista em ir para a rua lutar não pelos nossos direitos, mas contra os direitos dos outros.
E definitivamente houve algo fascista na manifestação lisboeta pela "família verdadeira". PNR? Acção Nacional? Bandeiras negras? Acusar os homossexuais da "destruição sistemática da sociedade"? Não soa a nada? Esqueceram-se de como Hitler tratou do assunto? E não será isto anticonstitucional?
Mas não sei o que é pior, se a organização ter acolhido um punhado de neonazis, se aqueles milhares de pais extremosos com os filhos às cavalitas, certamente convencidos de que não estavam a fazer mal a ninguém, deus os livre.
Pois estavam, pois estão.
Como lembra aquele poema da Sophia sobre as pessoas sensíveis que não matam galinhas mas comem galinhas.
Impedir que os outros tenham direito ao que nós temos é fazer o bem? Nem toda a gente crê na vida eterna. Muita gente corre contra a morte sabendo que vai perder. Por isso é que Larry David defende no último filme de Woody Allen whatever works. Tudo o que nos der um pouco de alívio, de confiança, de alegria. E se esse tudo inclui o casamento, que seja para todos.
Pergunto eu, então, às autoproclamadas famílias verdadeiras: quem vos dá o direito de dizer à sociedade o que ela deve ser?, quem vos dá o direito de dizer à sociedade que ela seja o que já não é?, quem vos dá o direito de dizer à mãe de um homossexual que a família dela não é verdadeira? Deram-se ao trabalho de pensar no que mães, pais, filhos ou avós de homossexuais sentem ao ler os vossos cartazes? Não vêem a arrogância disto? A violência?
Será fazer o bem achar que vocês são verdadeiros e os outros são falsos?
A família verdadeira é aquela que se mantém à custa de mentira, traição, neurose? Não será, antes e finalmente, amor, clareza, coragem? Não serão famílias verdadeiras todas aquelas que querem, e conseguem, estar juntas?
A melhor herança do Novo Testamento é amor, amor e amor. Então dediquem-se a fazer o amor, espalhem todos esses ensinamentos cristãos e deixem viver os que querem viver. Olhem para os vossos filhos, para os vossos pais, para as crianças abandonadas, para quem tem fome, frio, medo e está doente. Dêem-lhes todo esse tempo investido na promoção da suposta família verdadeira. E parem de atrapalhar o trânsito com assuntos que não são da vossa conta.
Eu não quero decidir em referendo o que dois adultos legalmente responsáveis fazem um com o outro porque não é da minha conta. E tenho as minhas ideias sobre o que são arruaceiros, por exemplo, gente que humilha, insulta e exclui sob protecção policial, e se propõe consumir dinheiros públicos a decidir a vida dos outros.
Sim, creiam, os homossexuais vão casar e ter filhos, é o futuro. Ninguém discriminado por raça, religião ou orientação sexual, lembram-se? Talvez os vossos filhos vos possam ensinar.
(*) Imagem adaptada da foto de Miguel A. Lopes (Lusa)