27 junho 2009

stasis

Rui Tavares
Público, 22 de Junho de 2009

Um pormenor que talvez seja revelador: durante anos, a política oficial dos EUA foi a de não reconhecer o regime iraniano. Bush proclamou sempre que os EUA poderiam usar "todas as opções" (incluindo bombardeamentos ou uma invasão) para derrubar o regime pelo exterior. E durante esses anos todos, o regime iraniano parecia estável como um rochedo, e os iranianos elegeram Ahmadinejad em 2005.
Com Obama, os EUA abandonaram a estratégia anterior. Obama passou a mencionar sempre a "República Islâmica do Irão", num reconhecimento implícito do regime iraniano, coisa que deixou os seus adversários doidos. O objectivo de "mudança de regime" a partir do exterior foi afastado. E não só os EUA recusam na prática a hipótese de bombardear ou invadir o Irão, como (sabe-se) negaram permissão a Israel para fazer o mesmo.
E o que aconteceu? Depois de uma eleição fraudulenta, em que Ahmadinejad terá sido provavelmente derrotado, milhões de iranianos saem às ruas e fazem o regime passar pelo pior susto da sua história. E isto não acontece quando Washington quer atacar Teerão, mas sim falar com Teerão.
Há ligação entre uma coisa e outra? Sim e não.
Do lado do sim: quem já viu dois bêbados à luta notou certamente que, passado algum tempo, eles acabam por ficar apoiados um no outro. Mais do que atacarem-se através da briga, é a briga que os mantém de pé. Nesse momento, aquele que tiver o discernimento de se afastar leva o outro a estatelar-se no chão. Uma das grandes ironias da política internacional é que, às vezes, as potências belicosas parecem bêbados à briga.
Numa explicação menos colorida: num conflito prolongado as partes acabam por encontrar um ponto de equilíbrio e a partir daí, longe de se consumirem no conflito, sustentam-se através do conflito. Era a isso que os gregos antigos chamavam stasis, o estado de equilíbrio que se atinge através do conflito permanente.
Não é por acaso que Khamenei ou Ahmadinejad; ao tentarem sufocar a rebelião, procuram sempre encontrar um ponto de conflito com o exterior. O segredo do regime era que esse ponto de conflito era, na verdade, um ponto de apoio. Agora o regime é como uma cadeira a que falta uma perna. Mais do que nunca, o conflito com os EUA permitir-lhes-ia encostarem-se a alguma coisa. Agora que lhes falta esse ponto de apoio, como lidar com a multidão nas ruas?
Por outro lado, isto significa também que se o"perigo exterior” já não está ali para fazer chantagem sobre a população, a oposição iraniana fica mais à vontade para combater o regime e evitar a ditadura. Quer isso dizer que devemos atribuir os acontecimentos no Irão às estratégias que se adoptaram cá fora?
A resposta a isso é não; um rotundo não. Quem arrisca a pele ao sair para as manifestações é o povo iraniano. Quem tem de tomar decisões de vida ou morte são os iranianos. A coragem é deles e a mudança que houver a eles pertencerá.
A nós, que não arriscamos a pele, e - ao contrário dos que defenderam Bush - temos noção de que não há especial heroísmo em escrever crónicas como esta, por detrás dos nossos computadores, a milhares de quilómetros de distância, cabe-nos não deixar que a coragem dos iranianos caia no esquecimento e no silêncio. Este momento de desequilíbrio entre períodos de stasis não durará muito tempo, e é necessário estar atento.