Brincar aos ricos
Filipe Luís
Visão, 1 de Agosto de 2013
Tornou-se viral, nas redes sociais, a reportagem publicada na revista do Expresso, sobre o «refúgio das elites» da Comporta. Viral, sobretudo, a crítica aos critérios editoriais do semanário e a descompostura colectiva à frase de uma das entrevistadas, Cristina Espírito Santo, onde, por se viver ali «em estado mais puro», estar na Comporta seria como «brincar aos pobrezinhos». Sobre os critérios jornalísticos, nada a dizer. É uma reportagem interessante, publicada na época certa do ano, que nos dá uma perspectiva de um mundo pouco conhecido do comum dos portugueses, e que nos diz que, apesar da crise, há quem continue a safar-se - o que é notícia de interesse público. Condenar a reportagem é matar o mensageiro. Uma estupidez, portanto.
Mas debrucemo-nos sobre a polémica frase da entrevistada. Para já, e ao contrário do que defenderam os talibans do facebook, ela não define o carácter da sua autora nem nos indica que ela se move por alguma espécie de intenção malévola de amesquinhar os portugueses, num tempo em que todos parecem caminhar para um «estado mis puro» de pobreza. Miguel Sousa Tavares assinalou que o facebook é a maior ameaça do século XXI. Ao contrário do que parece, é, pelo menos, a maior ameaça à liberdade de expressão... Assim, as críticas fáceis e a indignação piedosa rapidamente queimaram Cristina Espírito Santo na santa fogueira do face. É caso para dizer: pobrezinha!
Não, aquela frase não é suficientemente nobre para suscitar a indignação de ninguém. Ela deve, antes, ser analisada cientificamente. É matéria para a antropologia social: em 2013, ano pior da nossa vida colectiva recente, ainda existe gente que continua a ter da pobreza uma imagem romântica, que o salazarismo consagrou ideologicamente e cinco anos de empobrecimento súbito recente não abalaram. «Pobre mas remendado», eis como Salazar via o país. E eis como Cristina Espírito Santo vê o «estado mais puro»: «Pintei-a [à casa], renovei-a. Fiz uma boa casa de banho. Mas deixei a estrutura de origem, com colmo em determinadas zonas. Muito rústica. (...) É como brincar aos pobrezinhos».
Os que retêm da pobreza a rusticidade e o pitoresco nunca viram um pobre. Não entraram numa mansarda sem água corrente, não mandaram os filhos para a escola sem uma refeição, não passam frio por falta de dinheiro para o aquecimento, não morreram de doença por não poderem pagar uma taxa moderadora. Não conhecem o estigma do desemprego, nunca leram, viram ou escutaram a sociedade à sua volta. É por isso que a frase é, do ponto de vista do caso de estudo, tão interessante: ainda há gente assim! E essa gente merece ser, não criticada, mas estudada, como se estuda uma avis rara.
A política europeia de resgate à banca e apoio aos banqueiros, especuladores e grandes grupos económicos, a circulação e fuga de capitais, a evasão fiscal e a existência de offshores em muito contribuem para que os nossos pobrezinhos não possuam moradias rústicas, com o charme de algumas coberturas de colmo e «uma boa casa de banho». E também contribuem para que haja quem ignore essa realidade.
Nada nos diz, portanto, que Cristina Espírito Santo seja uma pessoa má ou insensível. A sua frase, que tantos condenaram apressadamente, apenas nos diz que se trata de uma pobre de espírito - a brincar aos ricos.
Visão, 1 de Agosto de 2013
Tornou-se viral, nas redes sociais, a reportagem publicada na revista do Expresso, sobre o «refúgio das elites» da Comporta. Viral, sobretudo, a crítica aos critérios editoriais do semanário e a descompostura colectiva à frase de uma das entrevistadas, Cristina Espírito Santo, onde, por se viver ali «em estado mais puro», estar na Comporta seria como «brincar aos pobrezinhos». Sobre os critérios jornalísticos, nada a dizer. É uma reportagem interessante, publicada na época certa do ano, que nos dá uma perspectiva de um mundo pouco conhecido do comum dos portugueses, e que nos diz que, apesar da crise, há quem continue a safar-se - o que é notícia de interesse público. Condenar a reportagem é matar o mensageiro. Uma estupidez, portanto.
Mas debrucemo-nos sobre a polémica frase da entrevistada. Para já, e ao contrário do que defenderam os talibans do facebook, ela não define o carácter da sua autora nem nos indica que ela se move por alguma espécie de intenção malévola de amesquinhar os portugueses, num tempo em que todos parecem caminhar para um «estado mis puro» de pobreza. Miguel Sousa Tavares assinalou que o facebook é a maior ameaça do século XXI. Ao contrário do que parece, é, pelo menos, a maior ameaça à liberdade de expressão... Assim, as críticas fáceis e a indignação piedosa rapidamente queimaram Cristina Espírito Santo na santa fogueira do face. É caso para dizer: pobrezinha!
Não, aquela frase não é suficientemente nobre para suscitar a indignação de ninguém. Ela deve, antes, ser analisada cientificamente. É matéria para a antropologia social: em 2013, ano pior da nossa vida colectiva recente, ainda existe gente que continua a ter da pobreza uma imagem romântica, que o salazarismo consagrou ideologicamente e cinco anos de empobrecimento súbito recente não abalaram. «Pobre mas remendado», eis como Salazar via o país. E eis como Cristina Espírito Santo vê o «estado mais puro»: «Pintei-a [à casa], renovei-a. Fiz uma boa casa de banho. Mas deixei a estrutura de origem, com colmo em determinadas zonas. Muito rústica. (...) É como brincar aos pobrezinhos».
Os que retêm da pobreza a rusticidade e o pitoresco nunca viram um pobre. Não entraram numa mansarda sem água corrente, não mandaram os filhos para a escola sem uma refeição, não passam frio por falta de dinheiro para o aquecimento, não morreram de doença por não poderem pagar uma taxa moderadora. Não conhecem o estigma do desemprego, nunca leram, viram ou escutaram a sociedade à sua volta. É por isso que a frase é, do ponto de vista do caso de estudo, tão interessante: ainda há gente assim! E essa gente merece ser, não criticada, mas estudada, como se estuda uma avis rara.
A política europeia de resgate à banca e apoio aos banqueiros, especuladores e grandes grupos económicos, a circulação e fuga de capitais, a evasão fiscal e a existência de offshores em muito contribuem para que os nossos pobrezinhos não possuam moradias rústicas, com o charme de algumas coberturas de colmo e «uma boa casa de banho». E também contribuem para que haja quem ignore essa realidade.
Nada nos diz, portanto, que Cristina Espírito Santo seja uma pessoa má ou insensível. A sua frase, que tantos condenaram apressadamente, apenas nos diz que se trata de uma pobre de espírito - a brincar aos ricos.
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