14 maio 2010

a glória de portugal

Alexandra Lucas Coelho
Público, 14 de Maio de 2010

Levantei voo de Joanesburgo e aterrei directamente na glória de Portugal.
A rotunda principal da nação, o Marquês de Pombal, respirava beatitude, com uma fachada à esquerda a dar as boas-vindas a Bento XVI e uma fachada à direita a dar as boas-vindas a Bento XVI. Atraída pelo azul, desci a Avenida da Liberdade. Em cada estandarte com o nome de Bento XVI, um crente dizia-me que o pai o ensinara a escutar, acreditar, partilhar, confiar, perdoar, esperar, amar, rezar e festejar. Na verdade não sei se era o pai ou o Pai porque estava tudo em maiúsculas. Ao chegar aos Restauradores, eu continuava sem saber se quem ensinara aqueles crentes tinha sido o pai biológico, o Pai Eterno ou Bento XVI, mas estava certa de que não ensinara nada sobre sida. Depois da África do Sul, esse país em vias de desenvolvimento onde o arcebispo anglicano Desmond Tutu distribui preservativos, eis Portugal, este país desenvolvido onde os católicos são ensinados por um pai que condena o uso de preservativos, e o Estado ajuda a celebrá-lo.
Sempre na senda de Bento XVI, atravessei o Rossio e a Rua do Ouro. No Terreiro do Paço o chão já estava pronto, aleluia. Mas o que era isso comparado com o altar erguido no Cais das Colunas. Uma imensa cruz branca erguia-se como se fôssemos de novo partir para converter mundos em nome do Pai, do Filho & do Espírito Santo. Já não me lembro da última vez que o Terreiro do Paço foi uma praça a sério, mas ainda bem que existe Bento XVI, porque habemus Terreiro do Paço.
À noite cometi o erro de apanhar um táxi e demorei 45 minutos de Alfama ao Príncipe Real. Independentemente do Papa, duas procissões avançavam para a Baixa.
No dia seguinte, houve o Benfica. Lisboa urrava ao longe e depois urrou ao perto quando o metro parou na Baixa-Chiado e os adeptos do Glorioso invadiram o espaço vital, empunhando garrafas. Tentaram partir os vidros, abanar a carruagem e urrar ao mesmo tempo. Após Joanesburgo, essa cidade perigosa, foi bom viajar assim, sem temer pela vida.
Nos cinemas do El Corte Inglés, pela primeira vez não esperei para comprar bilhete. Quando entrámos na sala só havia mais dois espectadores e um deles era aquele senhor de cachecol, óculos e cabeleira branca que acena às pessoas na Fontes Pereira de Melo. Depois, subi as escadas rolantes para a noite de Lisboa. Camiões com adeptos aos pulos cortavam as avenidas. Uma alegria emocionante, sobretudo se conseguíssemos manter-nos vivos.
No dia seguinte, a bancarrota ameaçou o nosso 13.º mês, mas no dia seguinte a esse chegou o Papa.
Ao fim de hora e meia a ver autocarros com o letreiro "A Carris saúda Bento XVI" perguntei a um motorista estacionado se ele também saudava. Centenas de alunos vestiam camisolas azuis a dizer "Eu Acredito". Nos correios vendiam-se camisolas com a cara de Bento XVI. E o Benfica tinha na manga a camisola Bento 16.
Aos 83 anos, é o mais recente ponta-de-lança português.

13 maio 2010

cortina

Paulo Varela Gomes
Público, 8 de Maio de 2010

Estou a ver à minha frente (mas o leitor não, peço desculpa) uma fotografia da pequena praceta de San Lorenzo em Nápoles. É uma imagem a preto e branco, provavelmente da década de 1950. Há pessoas que passam, miúdos que brincam no chão, tabernas abertas para a rua, uma senhora debruçada à varanda do primeiro andar de um prédio que tem roupa pendurada nas janelas. No meio da praceta, uma barraquinha onde se vendem flores abriga do sol a silhueta discreta de uma jovem mulher.
Escrevendo acerca de Nápoles, Walter Benjamim, que era alemão e portanto do Norte, disse que nas cidades do Sul "toda a atitude e todo o acto privado são submergidos pela onda do comunitário", precisando que nestas cidades "a casa abre-se para a rua com cadeiras, fogareiro e altar" e é "muito menos o abrigo em que se entra do que o inesgotável reservatório de onde se sai". Porém, acrescenta ele, também o inverso é verdade: "a rua invade a casa" enchendo-a de "velas, santos, molhos de fotografias". Em contrapartida, escreve Benjamin, nas cidades do Norte "existir é tudo o que há de mais privado".
No anúncio de uma empresa de telecomunicações que passa cansativamente nas televisões portuguesas, há pessoas muito contentes por terem em casa, a funcionar ao mesmo tempo, todos os seus neo-electrodomésticos (expressão - óptima - inventada por uma amiga minha). É um não acabar de ecrãs: televisão, computador, coisinhas pequeninas. De facto, não se consegue entrar na casa de qualquer pessoa pobre ou pobre de espírito, sem haver pelo menos uma televisão ligada. O mundo parece ter-se transformado numa enorme Nápoles à maneira da descrição de Benjamin: a rua entra nas casas livremente (embora mediatizada pelos electrodomésticos inventados para isso).
Em algumas das cidades do Norte de que falava Benjamin - por exemplo, Haia - as casas das famílias protestantes têm vidraças sem cortinas que deixam ver todos os cantos das salas. Destinam-se a provar que quem habita aquela casa não tem nada a esconder e vive sem pecado. Estas casas são muito parecidas com os bordéis de Amesterdão, também na Holanda, onde há vidraças igualmente transparentes. Nos bordéis, para se apregoar que ali se vive em pleno pecado é necessário fazer como os burgueses de Haia: mostrar tudo.
Estas janelas e montras, bem como a utilização moderna dos meios de comunicação, parecem corresponder à entrada da rua pela casa dentro nas cidades do Sul de que falava Benjamin: os ecrãs são vidraças nas quais vemos tudo o que se passa na rua, incluindo as coisas mais proibidas. Todavia, esta visibilidade não significa sempre vizinhança ou sentimento colectivo, porque não se verifica a outra característica que Benjamim imaginava: a casa não sai à rua. De facto, a segurança impõe em toda a parte portas fechadas.
A cortina que, nas aldeias, ainda volta discretamente ao seu lugar depois de nós passarmos, estabelece uma relação mais "napolitana" com a rua que qualquer ecrã ligado 24 horas por dia. Faz da rua e da casa os dois lados de uma mesma vida.