15 janeiro 2010

vida de aldeia

Alexandra Lucas Coelho
Público, 15 de Janeiro de 2010

Nunca hei-de fazer vida nos bosques, ou em qualquer lugar onde ninguém, se eu gritasse, me ouviria. As velhas casas isoladas devem manter-se belas à distância de um monte ou num livro das Brontë. Sempre que dormi em casas relativamente isoladas, havia mais gente em casa. Ainda assim, as noites demoraram o dobro dos dias. Depois de trancadas portas e janelas, infiltrava-se o problema dos fantasmas.
Não acredito em fantasmas, mas as casas isoladas acreditam, sobretudo as mais velhas.
Conheço uma que tem a vantagem e a desvantagem de estar em cima de rochas. Vive há tempo bastante para conhecer corsários. Os quartos são ex-celas ao longo de um corredor. De dia, tudo é luz, cor e razão. À noite, não se vê nada e ouve-se tudo, estalidos, rangidos e o mar negro. Das duas vezes que lá dormi, acordar era sempre espantoso. Afinal não tínhamos morrido, e tudo esplendia de inocência.
Desde então, tenho vindo a pensar em aldeias.
 

A vantagem de uma aldeia é que os bosques são já ali, mas até lá há gente. Apanham-se xuxus para a sopa. Vemos em Janeiro as couves que havemos de comer. Sai fumo das casas, ladram cães, quando chove há lama, depois a erva brilha. Nada de mal nos pode acontecer. É uma aldeia portuguesa e não um filme de David Lynch.
Eis então que me instalo sozinha na aldeia por duas semanas.
A casa fica num alto e tem dois andares. Atrás é mato; em baixo e de um lado mora gente; mas do outro lado há uma casa abandonada, daquelas com vidros partidos, ervas daninhas, portadas soltas.
Chegada à noite, fecho as minhas portadas de baixo e de cima, tranco a porta das traseiras e a da frente, e mesmo (horror) a do quarto. Mas mal fico quieta começam os barulhos.
A primeira noite na aldeia nunca mais é de manhã.
Até que acordo, e se acordo devo ter dormido, portanto estou viva.
Talvez ainda seja hora de ir ao pão. Céu acabado de lavar, gotinhas nas couves, cheiro a terra. Volto com o último pão caseiro, foi por um triz. Daí a nada vêm oferecer-me o único ovo da única galinha que há na casa lá em baixo, acabado de pôr. Tenho-o na mão, é verdadeiro.
O céu abre e fecha. Durante toda a tarde chove pesado. Não há água quente porque o gás congelou na bilha. A minha pen de banda larga não funciona. Quando a chuva pára, fecho as portadas de baixo e de cima. A noite vai novamente começar.
Contaram-me que os donos da casa abandonada andam na América. São filhos emigrados, ou já netos. Não querem saber das terras. E se há terras para trás, cheias de mato. Terá havido um tempo em que esta casa era a mais bonita da aldeia, com o seu alpendre, os seus beirais, toda ocre. Hei-de perguntar quem foram os últimos a viver lá. Ou talvez não. Se lhes mexo ainda acordam.

06 janeiro 2010

lhasa de sela: a nómada não canta mais

João Bonifácio
Ípsilon (Público, 5 de Janeiro de 2010)

Tão repentinamente como surgiu também assim partiu: Lhasa de Sela, cantora e compositora nascida em Nova Iorque, mas profundamente influenciada pela cultura mexicana, faleceu no dia 1 de Janeiro deste ano, aos 37 anos de idade, de um cancro da mama, contra o qual lutava há 21 meses. Deixou pai, mãe, irmãos, sobrinhos, e um culto de fãs indefectíveis, reflectido no milhão de cópias que os seus três discos venderam.
Desde a primeira vez que a sua voz se ouviu em disco que Lhasa surgiu aos melómanos como um ser vindo de outro mundo. Do seu álbum de estreia, La Llorona, composto a meias com o magnífico músico Yves Desroisiers, constavam apenas baladas cambaleantes, que versavam mitos pagãos mexicanos, amores de faca e alguidar, o sangue, a morte e as cartas que trazem a fortuna e a desgraça e nos traçam o destino.

Era um disco centrado na guitarra acústica de Desroisiers, com apontamentos de acordeão e banjo, mas que estava longe de ser "bonitinho", muito por força da voz de Lhasa, que dominava - ou assombrava, se quisermos ser exactos - cada canção: possuidora de uma voz grave mas ampla, Lhasa tão depressa conseguia soar ébria como apaixonada como vingativa como sensual. La Llorona cantava os mais velhos dos assuntos e Lhasa cantava-os como se existisse desde sempre, como se aquelas canções estivessem ali, há séculos, à espera de serem ouvidas. Não parecia ter 26 anos: parecia ser mais velha que Chavela Vargas, a diva mexicana com quem na altura foi comparada. Podia ter uma voz de veludo, mas aquele veludo conhecia todo o tipo de nódoas.

Irrequietude natural
O êxito de La Llorona foi rápido e surpreendente, em particular tendo em conta que em 1997 o mundo não estava propriamente virado para canções acústicas cantadas em espanhol. Mas além das canções, a própria Lhasa contribuiu para o sucesso do disco: não só era tremendamente bonita como tinha igualmente uma história pessoal incomum que contribuiu, nesses dias pré-YouTube, para o mito de "mulher misteriosa" que sempre a seguiu.
Filha de pai mexicano e mãe americana-judia-libanesa, Lhasa não cresceu como a maior parte das raparigas. Os seus pais eram nómadas, e ela passou os primeiros anos de vida com eles e os irmãos on the road entre os Estados Unidos e o México. Todas as noites, em vez de ver televisão, os irmãos faziam um teatrinho ou cantavam. Isto marcou-a ao ponto de após a digressão de La Llorona se ter juntado a um circo em França.
A sua história de vida valeu-lhe o epíteto "cantora nómada", mas quem teve oportunidade de privar com ela tem a impressão de o nomadismo não se dever a uma qualquer mania aventureira, antes a uma irrequietude natural e à incapacidade de conviver com a indústria musical. Numa entrevista à Roots World, na altura do lançamento do seu segundo disco, The Living Road, em 2003, Lhasa confessava que depois da digressão do primeiro disco abandonara tudo para ir para França porque se sentia "a morrer". "Fiz tudo menos rapar o cabelo e tornar-me freira", acrescentou. A vida no circo, rodeada de alguns dos irmãos, era simples e repleta de tarefas, o que lhe agradava: "Acordo todos os dias com a minha sobrinha a dizer-me que me ama", dizia, com candura.
The Living Road era um disco mais complexo, com guitarras, banjos, melódicas. Mesmo sendo um disco mais opulento, com arranjos imaculados, soava ainda a uma carroça a desconjuntar-se na beira de uma estrada poeirenta, e voltou a merecer os encómios da crítica.
Vasco Sacramento, produtor musical, convidou então Lhasa para uma digressão em Portugal por alturas do seu segundo disco, The Living Road, digressão que na altura acompanhámos. Sacramento disse ontem, numa nota à imprensa, que "Lhasa de Sela não estava interessada no estrelato, na fama ou no dinheiro". Acrescentou ainda que Lhasa "parecia que cantava apenas por imperativo de consciência, sem grandes preocupações com estratégia de mercado", antes de lembrar, num toque mais pessoal, que Lhasa lhe falava sempre do bacalhau que comera em Xabregas.

Intensidade assustadora
Lembramo-nos do bacalhau em Xabregas, mas acima de tudo confirmamos essa impressão de que Lhasa cantava apenas por imperativo de consciência. Lhasa revelou-se ao início uma mulher distante, sempre acompanhada dos seus cadernos, com dificuldade em posar para fotografias. Não gostava que lhe fizessem muitas perguntas e no entanto, uma vez ganha a sua confiança, percebia-se que a sua distância era uma timidez congénita.
Tinha o hábito de ouvir mais que falar e observava tudo à sua volta com uma intensidade que podia ser assustadora. Sabia deixar-se aproximar (deixou-nos conversar com a sua mãe, em quem depositava extrema confiança), mas precisava do seu momento de isolamento: antes do concerto da Aula Magna arranjou um cantinho onde fazer ioga sem ser perturbada pela banda ou por jornalistas - só a mãe podia estar ali com ela. Era sem dúvida reservada e intensa e tão doce quanto, ao que nos pareceu, assustada.
O terceiro disco, Lhasa, do ano passado, cantado em inglês, nunca foi devidamente promovido e já foi afectado pelas condições de saúde. Por esta altura já Lhasa colaborara com os Tindersticks e com Arthur H, cantor francês, e era um nome mais que firmado. Segundo os seus representantes, Lhasa, que só conseguia fazer o que queria, como queria e quando percebia o que verdadeiramente queria, tinha planos de fazer um disco com temas de Violeta Parra e Victor Jara.
A andarilha morreu. O seu site, Lhasadesela.com, abre com uma fotografia dela, de costas, o rosto encoberto pelo cabelo a esvoaçar ao vento. Em fundo há uma longa estrada. O salmo dizia: "Não serás como a palha que o vento leva." Lhasa teve a coragem de o ser, e foi maior por isso.